Page 34 - Demolidor - O homem sem medo - Crilley, Paul_Neat
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pensamento racional. Uma confusão de vozes que ele não consegue separar.

                Como um milhão de demônios agarrando-o a cada segundo de sua vida.
                  E  os  cheiros.  Eles  os  dominam,  o  inundam  em  asfixiantes  ondas  de
                saturação. Flores com aromas tão fortes que o fazem engasgar e tossir.

                  Um açougue a três quarteirões que joga sua carne velha e os ossos no beco
                todas  as  noites  antes  de  fechar,  um  cheiro  como  o  de  mil  cadáveres

                apodrecidos.
                  Até os perfumes e os desodorantes o soterram. Minutos antes dos médicos

                e  das  enfermeiras  chegarem,  ele  consegue  saber  que  estão  vindo.  Pode
                sentir o cheiro de suas presenças mesmo uma hora depois de partirem.

                  Os lençóis de algodão parecem lixas contra sua pele. As pontas de seus
                dedos  formigam  o  tempo  todo.  Como  se  de  alguma  forma  tivessem
                aumentado  de  tamanho,  suas  digitais  agora  estavam  tão  profundas  e

                sensíveis que podiam identificar fios de cabelos, como os de uma loira de
                cinquenta  anos,  em  uma  escova.  As  batidas  cardíacas  são  a  trilha  sonora

                para  todos  os  momentos.  Batidas  surdas,  se  sobrepondo,  rápidas,  lentas,
                temerosas, excitadas. Um batuque constante e um baixo que nunca para.

                  Nada disso para.
                  Operam  seus  olhos.  Tentam  fazer  raspagem,  limpar,  cortar  seus  globos

                oculares.  Seringas  são  enfiadas  em  suas  pupilas,  sugando  pus  e  sangue.
                Nada  funciona.  Depois  de  uma  das  cirurgias,  Matt  escuta  um  médico
                conversando.  Ele  diz  que  os  terminais  nervosos  atrás  dos  olhos  de  Matt

                parecem com o toco de um braço mutilado que ele viu em uma vítima de
                acidente de carro.

                  Há semanas que está na cama, catatônico. Incapaz de fazer qualquer coisa
                com  exceção  de  lutar  contra  seus  sentidos,  bloquear  os  estímulos  que  o

                estão enlouquecendo.
                  Ouve conversas que acontecem a ruas de distância. É como assistir a uma

                novela dos infernos a cada minuto de cada hora de cada dia. A garota da
                padaria  da  Rua  35  sempre  fala  sobre  o  namorado  que  bate  nela.  Uma
                secretária  a  cerca  de  cinco  quarteirões  de  distância  conta  ao  chefe  que  a

                esposa dele descobriu sobre eles. Uma criança a pelo menos um quilômetro
                de distância berra porque derrubou o sorvete.
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