Page 115 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
não com a imaginação; sofrer com coquetterie; ver claro para
escrever justo; conhecer-se com fingimento e tática, natura-
lizar-se diferente e com todos os documentos; em suma, usar
por dentro todas as sensações, descascando-as até Deus; mas
embrulhar de novo e repor na montra como aquele caixeiro
que de aqui estou vendo com as latas pequenas da graxa da
nova marca.
Todos estes ideais, possíveis ou impossíveis, acabam
agora. Tenho a realidade diante de mim — não é sequer o
caixeiro, é a mão dele (a ele não vejo) tentáculo absurdo de
uma alma com família e sorte [ ?] que faz trejeitos de aranha
sem teia no esticar-se da reposição cá à frente.
E uma das latas caiu, como o Destino de toda a gente.
"Sentir é uma maçada". Estas palavras casuais de não
sei que conviva a conversa de uns minutos ficou-me sempre
brilhando no chão da memória. A própria forma plebéia da
frase lhe dá sal e pimenta.
Criar dentro de mim um estado com uma política, com
partidos e revoluções, e ser eu isso tudo, ser eu Deus no
panteísmo real desse povo eu, essência e ação dos seus cor-
pos, das suas almas, da terra que pisam e dos atos que fazem.
Ser tudo, ser eles e não eles. Ai de mi! este ainda é um dos
sonhos que não logro realizar. Se o realizasse morreria tal-
vez, não sei porque, mas não se deve poder viver depois dis-
so, tamanho o sacrilégio cometido contra Deus, tamanha
usurpação do poder divino de ser tudo.
O prazer que me daria criar um jesuitismo das sensa-
ções!