Page 119 - Fernando Pessoa
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                       Estagno na  mesma  alma.  Dá-se  em  mim  uma  suspensão  da
                       vontade, da  emoção,  do pensamento,  e  esta  suspensão dura
                       magnos  dias;  só  a  vida  vegetativa  da  alma  —  a  palavra,  o
                       gesto, o  hábito  —  me exprimem  eu  para  os outros,  e,  atra-
                       vés deles, para mim.

                           Nesses  períodos  da  sombra,  sou  incapaz  de  pensar,  de
                       sentir, de querer.  Não  sei  escrever  mais  que  algarismos,  ou
                       riscos.  Não  sinto,  e a  morte  de  quem  amasse  far-me-ia  a
                       impressão de ter sido realizada numa língua estrangeira.  Não
                       posso; é como se dormisse e os meus gestos,  as minhas pala-
                       vras,  os  meus  atos  certos,  não  fossem  mais  que  uma  respi-
                       ração periférica,  instinto rítmico de um organismo qualquer.


                           Assim  se passam  dias  sobre  dias,  nem  sei  dizer  quanto
                       da minha vida, se somasse, se não haveria passado assim.  Às
                       vezes  ocorre-me  que,  quando  dispo  esta  paragem  de  mim,
                       talvez não esteja na nudez  que  suponho,  e  haja  ainda  vestes
                       impalpáveis a cobrir  a eterna ausência da minha  alma verda-
                       deira;  ocorre-me  que  pensar,  sentir,  querer  também  podem
                       ser estagnações,  perante  um  mais  íntimo  pensar,  um  sentir
                       mais meu,  uma vontade perdida algures  no  labirinto  do  que
                       realmente sou.

                            Seja como  for  deixo  que  seja.  E  ao  deus  ou  aos  deuses
                       que haja,  largo da  mão o que sou,  conforme  a sorte  manda e
                       o acaso faz,  fiel a um compromisso esquecido.





                            Há quanto tempo não escrevo!  Passei, em dias,  séculos
                       de renúncia incerta.  Estagnei,  como  um  lago  deserto,  entre
                       paisagens que não há.
                            No entretanto,  corria-me  bem  a monotonia variada  dos
                       dias, a sucessão nunca igual das horas iguais,  a vida.  Corria-
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