Page 120 - Fernando Pessoa
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LIVRO DO DESASSOSSEGO
me bem. Se dormisse, não me correria de outro modo. Es-
tagnei, como um lago que não há, entre paisagens desertas.
É freqüente o desconhecer-me — o que sucede com fre-
quência aos que se conhecem... Assisto a mim nos vários
disfarces com que sou vivo. Possuo de quanto muda o que é
sempre o mesmo, de quanto se faz tudo o que é nada.
Relembro, longínquo em mim, como se viajara para
dentro, a monotonia, todavia tão diferente, daquela casa de
província... Ali passei a infância, mas não saberia dizer, se
quisesse fazê-lo, se com mais ou menos felicidade do que
passo a vida de hoje. Era outro o quem sou que ali vivia: são
vidas diferentes, diversas, incomparáveis. As mesmas mono-
tonias, que as aproximam por fora, eram sem dúvida dife-
rentes por dentro. Não eram duas monotonias, mas duas
vidas.
A que propósito relembro?
O cansaço. Lembrar é um repouso, porque é não agir.
Que de vezes, para maior descanso, relembro o que nunca
foi, e não há nitidez nem saudade nas minhas memórias das
províncias [ ?] onde estive como os que moram, tábua a tábua
do soalho, oscilo o oscilo de outras, nas vastas salas onde
nunca morei.
De tal modo me converti na ficção de mim mesmo que
qualquer sentimento natural, que eu tenho, desde logo, des-
de que nasce, se me transtorna num sentimento da imagi-
nação — a memória em sonho, o sonho em esquecer-me
dele, o conhecer-me em não pensar em mim.
De tal modo me desvesti do meu próprio ser, que existir
é vestir-me. Só disfarçado é que sou eu. E, em torno de mim,
todos poentes incógnitos douram, morrendo, as paisagens
que nunca verei.
Sabendo como as coisas mais pequenas têm com facili-
dade a arte de me torturar, de propósito me esquivo ao toque