Page 117 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
vezes atinjo. Sim, sonhar que sou por exemplo, simultanea-
mente, separadamente, inconfusamente, o homem e a mu-
lher dum passeio que um homem e uma mulher dão à beira
rio. Vêr-me, ao mesmo tempo, com igual nitidez, do mesmo
modo, sem mistura, sendo as duas coisas com igual integra-
ção nelas, um navio consciente num mar do sul e uma pá-
gina impressa dum livro antigo. Que absurdo que isto pa-
rece ! Mas tudo é absurdo, e o sonho ainda é o que o é menos.
Criei-me eco e abismo, pensando. Multipliquei-me apro-
fundando-me. O mais pequeno episódio — uma alteração
saindo da luz, a queda enrolada de uma folha seca, a pétala
que se despega amarelecida, a voz do outro lado do muro ou
os passos de quem a diz junta aos de quem a deve escutar,
o portão entreaberto da quinta velha, o pátio abrindo com
um arco das casas aglomeradas ao luar — todas estas coisas,
que me não pertencem, prendem-me à meditação sensível
com laços de ressonância e de saudade. Em cada uma dessas
sensações sou outro, renovo-me dolorosamente em cada im-
pressão indefinida.
Vivo de impressões que me não pertencem, perdulário
de renúncias, outro no modo como sou eu.
Criei em mim várias personalidades. Crio personalida-
des constantemente. Cada sonho meu é imediatamente, logo
ao aparecer sonhado, encarnado numa outra pessoa, que pas-
sa a sonhá-lo, e eu não.
Para criar, destrui-me; tanto me exteriorizei dentro de
mim, que dentro de mim não existo senão exteriormente.
Sou a cena viva onde passam vários atores representando vá-
rias peças.