Page 125 - Fernando Pessoa
P. 125

FERNANDO  PESSOA
                        conhecimento,  salvo de conforto,  da existência  do meu cor-
                        po.  Vou sentindo fugir-me a inconsciência feliz com que  es-
                        tou  gozando  da  minha  consciência,  o  modorrar  de  animal
                        com  que espreito, entre pálpebras  de  gato  ao  sol,  os  movi-
                        mentos  da  lógica  da  minha  imaginação  desprendida.  Vou
                        sentindo  sumirem-se-me  os  privilégios  da  penumbra,  e  os
                        rios lentos sob as  árvores das pestanas entrevistas,  e o  sus-
                        surro das cascatas perdidas entre o som do  sangue lento  nos
                        ouvidos e o  vago perdurar de chuva.  Vou-me  perdendo  até
                        vivo.

                             Não sei se durmo, ou se só sinto que durmo. Não sonho
                        o intervalo certo, mas reparo, como se começasse a despertar
                        de um  sono não dormido os  primeiros  ruídos da  vida  da ci-
                        dade,  a subir,  como  uma cheia,  do lugar vago,  lá  embaixo,
                        onde  ficam  as  ruas  que  Deus  fez.  São  sons  alegres,  coados
                        pela tristeza da chuva que há, ou, talvez, que houve — pois a
                        não ouço agora... — só o cinzento excessivo da luz frinchada
                        até  mais  longe  que  me  dá,  nas  sombras  de  uma  claridade
                        frouxa,  insuficiente para a altura da madrugada,  que  não  sei
                        qual é.  São sons  alegres e  dispersos  e  doem-me  no  coração
                        como  se  me  viessem,  com  eles,  chamar a  um  exame  ou  a
                        uma execução. Cada dia se o ouço raiar da cama onde ignoro,
                        me  parece o  dia  de  um  grande  acontecimento  meu  que não
                        terei coragem para enfrentar.  Cada  dia,  se o sinto erguer-se
                        do leito das sombras,  com um cair de roupas  da  cama  pelas
                         ruas  e  as  vielas,  vem  chamar-me  a  um  tribunal.  Vou  ser
                        julgado em cada hoje que há.  E o condenado perene que há
                        em mim agarra-se ao leito como à mãe que perdeu, e acaricia
                        o travesseiro como se a ama o defendesse de gentes.


                             A  sesta  feliz  do  bicho  grande  à  sombra  de  árvores,  o
                        cansaço  fresco  do esfarrapado entre a erva  alta, o  torpor  do
                         negro  na  tarde  morna  e  longínqua  a  delícia  do  bocejo  que
                         pesa nos olhos frouxos tudo que  acaricia o  esquecimento  fa-
                         zendo sono, o sossego do repouso na cabeça, encostando, pé
   120   121   122   123   124   125   126   127   128   129   130