Page 126 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO
           ante  pé,  as  portas  da  janela  na  alma,  o  afago  anônimo  de
           dormir.
               Dormir,  ser  longínquo  sem  o  saber,  estar  deitado,  es-
           quecer  com o próprio  corpo;  ter  a  liberdade  de  ser  incons-
           ciente,  um  refúgio do  lago  esquecido,  estagnado entre  fron-
           des árvores, nos vastos afastamentos das florestas.
               Um nada  com  respiração  por  fora,  uma  morte leve,  de
           que se desperta com saudade e frescura, um ceder dos tecidos
           da alma à roupagem do esquecimento.

               Ah, e de novo, como o protesto reatado de quem se não
           convenceu,  ouço  o  alarido  brusco  da  chuva  chapinhar  no
           universo aclarado. Sinto um frio até aos ossos supostos, como
           se tivesse medo. E agachado, nulo, humano a sós comigo na
           pouca treva que ainda me resta, choro, sim, choro, choro de
           solidão e de vida, e a minha mágoa fútil como um carro sem
           rodas jaz à beira da realidade entre os estercos do abandono.
           Choro de tudo,  entre perda do regaço,  a morte da mão  que
           me  davam,  os  braços  que  não  soube  como  me  cingissem,
           o ombro  que  nunca  poderia ter...  E o  dia  que  raia  definiti-
           vamente, a mágoa que raia em mim como a verdade crua do
           dia, o que sonhei, o que  pensei, o que se esqueceu em  mim
           —  tudo  isso,  num  amálgama  de  sombras,  de  ficções  e  de
           remorsos, se mistura no rastro em que vão os mundos e cai
           entre  as  coisas  da  vida  como  o  esqueleto  de  um  cacho  de
           uvas, comido à esquina pelos garotos que o roubaram.

               O ruído do dia humano aumenta de repente,  como um
           som  de sineta de chamada.  Estala  a  dentro  de  casa o  fecho
           suave da primeira porta que se abre para universo [ ?]. Ouço
           chinelos num corredor absurdo que conduz até meu coração.
           E  num  gesto brusco,  como  quem  enfim  se  matasse,  arrojo
           de sobre o corpo duro as  roupas  profundas  da cama que me
           abriga.  Despertei.  O  som  da chuva esbate-se  para  mais alto
           no exterior indefinido. Sinto-me mais feliz. Cumpri uma coi-
           sa  que  ignoro.  Ergo-me,  vou  à  janela,  abro  as  portas  com
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