Page 129 - Fernando Pessoa
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172 FERNANDO PESSOA
Abrigaram-me as suas casas, as suas mãos apertaram a
minha, viram-me passar na rua como se eu lá estivesse; mas
quem sou não esteve nunca naquelas salas, quem vivo não
tem mãos que outros apertem, quem me conheço não tem
ruas por onde passe, a não ser que sejam todas as ruas, nem
que nelas o veja, a não ser que ele mesmo seja todos os
outros.
Vivemos todos longínquos e anônimos; disfarçados, so-
fremos desconhecidos. A uns, porém, esta distância entre
um ser e ele mesmo nunca se revela; para outros é de vez
em quando iluminada, de horror ou de mágoa, por um re-
lâmpago sem limites; mas para outros ainda é essa a dolorosa
constância e quotidianidade da vida.
Saber bem que quem somos não é conosco, que o que
pensamos ou sentimos é sempre uma tradução, que o que
queremos o não quisemos, nem porventura alguém o quis —
saber tudo isto a cada minuto, sentir tudo isto em cada senti-
mento, não será isto ser estrangeiro na própria alma, exilado
nas próprias sensações?
Mas a máscara, que estive fitando inerte, que falava à
esquina com um homem sem máscara nesta noite de fim de
Carnaval, por fim estendeu a mão e se despediu rindo. O
homem natural seguiu à esquerda, pela travessa a cuja es-
quina estava. A máscara — dominó sem graça — caminhou
em frente, afastando-se entre sombras e acasos de luzes,
numa despedida definitiva e alheia ao que eu estava pen-
sando. Só então reparei que havia mais na rua que os can-
deeiros acesos, e, a turvar onde eles não estavam, um luar
vago, oculto, mudo, cheio de nada como a vida...