Page 128 - Fernando Pessoa
P. 128
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Tudo que existe existe talvez porque outra coisa existe.
Nada é, tudo coexiste: talvez assim seja certo. Sinto que eu
nâo existiria, nesta hora — que não existiria, ao menos, do
modo em que estou existindo, com esta consciência presente
de mim, que por ser consciência e presente é neste momento
inteiramente eu — se aquele candeeiro não estivesse aceso
além, algures, farol não indicando nada num falso privilégio
de altura. Sinto isto porque não sinto nada. Penso isto por-
que isto é nada. Nada, nada, parte da noite e do silêncio e do
que com eles eu sou de nulo, de negativo, de intervalar, es-
paço entre mim e mim, coisa esquecimento de qualquer
deus...
Passei entre eles estrangeiro porém nenhum viu que eu
o era.Vivi entre eles espião, e ninguém, nem eu, suspeitou
que eu o fosse. Todos me tinham por parente: nenhum sabia
que me haviam trocado à nascença. Assim fui igual aos ou-
tros sem semelhança, irmão de todos sem ser da família.
Vinha de prodigiosas terras, de paisagens melhores que
a vida, mas das terras nunca falei, senão comigo, e das paisa-
gens, vistas se sonhava, nunca lhes dei notícia. Meus passos
eram como os deles nos soalhos e nas lages, mas o meu cora-
ção estava longe, ainda que batesse perto, senhor falso de um
corpo desterrado e estranho.
Ninguém me conheceu sob a máscara da igualha, nem
soube nunca que era máscara, porque ninguém sabia que
neste mundo há mascarados. Ninguém supôs que ao pé de
mim estivesse sempre outro, que afinal era eu. Julgaram-me
sempre idêntico a mim.