Page 127 - Fernando Pessoa
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                         uma decisão  de  muita coragem.  Luz um  dia  de  chuva  clara
                         que me afoga os olhos em luz baça.  Abro as próprias janelas
                         de vidro. O ar fresco umedece-me a pele quente. Chove, sim,
                         mas, ainda que seja o mesmo é  afinal  tão menos!  Quero re-
                         frescar-me,  viver,  e  inclino o  pescoço  à  vida,  como  a  uma
                        canga imensa.




                             Ó noite onde as estrelas mentem luz, ó noite, única coi-
                         sa do tamanho do Universo, torna-me,  corpo e  alma,  parte
                        do teu corpo, que eu me perca em ser mera treva e me torne
                        noite também, sem sonhos que sejam estrelas em mim,  nem
                        sol esperado que ilumine do futuro.





                             Floresce alto na solidão noturna um candeeiro incógnito
                        por trás  de  uma  janela.  Tudo  mais  na  cidade  que  vejo  está
                        escuro,  salvo  onde  reflexos  frouxos  da  luz  das  ruas  sobem
                        vagamente e fazem aqui e  ali  pairar  um  luar inverso,  muito
                        pálido.  Na negrura da noite a própria casaria destaca pouco,
                        entre si,  as  suas  diversas  cores,  ou  tons  de  cores:  só  dife-
                        renças  vagas,  dir-se-ia  abstratas,  irregularizam  o  conjunto
                        atropelado.

                             Um fio invisível me liga ao dono anônimo do candeeiro.
                         Não é a comum circunstância de estarmos ambos acordados:
                        não há nisso  uma  reciprocidade  possível,  pois,  estando eu à
                         janela no escuro,  ele  nunca  poderia  vêr-me.  É  outra  coisa,
                        minha só, que se prende um pouco com a sensação de  isola-
                         mento, que participa da noite e do silêncio, que escolhe aque-
                        le candeeiro para ponto de  apoio porque é o único ponto de
                         apoio que há.  Parece que é por ele estar  aceso  que a noite é
                        tão escura.  Parece que é por eu estar desperto,  sonhando  na
                        treva, que ele está alumiando.
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