Page 124 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO
                Nuvens...  Interrogo-me e desconheço-me.  Nada tenho
           feito de útil nem farei de justificável.  Tenho gasto a parte da
           vida  que  não  perdi  em  interpretar  confusamente  coisa  ne-
           nhuma,  fazendo  versos  em  prosa  às  sensações  intransmissí-
           veis corn que torno meu o universo incógnito.  Estou farto de
           mim,  objetiva  e  subjetivamente.  Estou  farto  de  tudo,  e  do
           tudo  de  tudo.  Nuvens...  São  tudo,  desmanchamentos  do
           alto, coisas  hoje só elas reais entre a terra nula e o  céu  que
           não existe; farrapos indescritiveis do tédio que lhes imponho;
           névoa condensada  em  ameaças  de  cor  ausente;  algodões  de
           rama sujos de um hospital sem paredes. Nuvens...  São como
           eu, uma passagem desfeita entre o céu e a terra, ao  sabor de
           um  impulso  invisível,  trovejando  ou  não  trovejando,  ale-
           grando brancas ou escurecendo negras, ficções do intervalo e
           do descaminho, longe do ruído da terra e sem ter o silêncio
           do céu. Nuvens... Continuam passando, continuam  sempre
           passando,  passarão  sempre continuando,  num  enrolamento
           descontínuo  de  meadas  baças,  num  alongamento  difuso  de
           falso céu desfeito.





               E por fim, por sobre a escuridão dos telhados lustrosos,
           a luz fria da manhã tépida raia como um  suplício  do  Apoca-
           lipse. É outra vez a noite imensa da claridade que aumenta. É
           outra  vez o  horror de  sempre  —  o dia,  a  vida,  a  utilidade
           fictícia,  a atividade  sem  remédio.  É outra  vez a  minha  per-
           sonalidade  física,  visível,  social,  transmissível  por  palavras
           que  não  dizem  nada,  usável  pelos  gestos  dos  outros  e  pela
           consciência alheia. Sou eu outra vez, tal qual não sou. Com o
           princípio da luz de trevas que enche de dúvidas cinzentas  as
           frinchas das portas das janelas —  bem longe de herméticas,
           meu Deus! —, vou sentindo que não poderei guardar mais o
           meu refúgio de estar deitado, de não estar dormindo mas  de
           o poder estar, de ir sonhando, sem saber que há verdade nem
           realidade, entre um calor fresco de  roupas  limpas e um  des-
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