Page 154 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO


               Nessas tardes  enche-me,  como um  mar  em  maré,  um
           sentimento  pior  que  o  tédio  mas  a  que  não  compete  outro
           nome senão tédio — um sentimento de desolação sem lugar,
           de naufrágio de toda a alma.  Sinto que perdi  um Deus com-
           placente,  que  a  Substância  de  tudo  morreu.  E  o  universo
           sensível é para  mim  um  cadáver  que  amei  quando  era  vida;
           mas é tudo tornado nada na luz ainda quente das últimas nu-
           vens coloridas.


               O meu tédio assume aspectos de horror; o  meu  aborre-
           cimento  é  um  medo.  O  meu  suor  não  é  frio,  mas  é  fria  a
           minha  consciência  do  meu  suor.  Não  há  mal-estar  físico,
           salvo que o mal-estar da  alma e tão grande  que  passa  pelos
           poros do corpo e o inunda a ele também.


               É tão magno o tédio, tão soberano o horror de estar vivo
           que  não  concebo  que coisa  haja  que pudesse  servir  de  leni-
           tivo, de antídoto, de bálsamo ou esquecimento para ele. Dor-
           mir  horroriza-me  como  tudo.  Morrer  horroriza-me  como
           tudo. Ir e parar são a mesma coisa impossível.  Esperar e des-
           crer equivalem-se em frio e cinza.  Sou uma prateleira de fras-
           cos vazios.


               Contudo que saudade do futuro se deixo os olhos vulga-
           res  receber  a  saudação  morta  do  dia  iluminado  que  finda!
           Que  grande  enterro  da  esperança  vai  pela  calada  dourada
           ainda dos céus inertes,  que cortejo de vácuos e nadas se es-
          palha a azul rubro que vai ser pálido pelas vastas planícies do
          espaço alvar!

               Não sei o que quero ou o que não quero. Deixei de saber
           querer,  de  saber  como  se  quer,  de  saber  as  emoções  ou  os
          pensamentos  com  que ordinariamente se conhece  que  esta-
           mos querendo, ou querendo querer.  Não sei quem  sou ou o
          que sou.  Como  alguém soterrado sob um muro que se des-
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