Page 157 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
nada salvo o alívio suposto, o momento propício e o poder
perder tudo esplendidamente.
Não sei quantos terão contemplado, com o olhar que
merece, uma rua deserta com gente nele. Já este modo de
dizer parece querer dizer qualquer outra coisa, e efetiva-
mente a quer dizer. Uma rua deserta não é uma rua onde não
passa ninguém, mas uma rua onde os que passam, passam
nela como se fosse deserta. Não há dificuldade em compreen-
der isto desde que se o tenha visto: uma zebra é impossível
para quem não conheça mais que um burro.
As sensações ajustam-se, dentro de nós a certos graus e
tipos da compreensão delas. Há maneiras de entender que
têm maneiras de ser entendidas.
Há dias em que sobe em mim, como que da terra alheia
à cabeça própria, um tédio, uma mágoa, uma angústia de
viver que só me não parece insuportável porque de fato a su-
porto. É um estrangulamento da vida em mim mesmo, um
desejo de ser outra pessoa em todos os poros, uma breve
notícia do fim.
As coisas nítidas confortam, e as coisas ao sol confor-
tam. Ver passar a vida sob um dia azul compensa-me de mui-
to. Esqueço indefinidamente, esqueço mais do que podia
lembrar. O meu coração translúcido e aéreo penetra-se da
suficiência das coisas, e olhar basta-me carinhosamente.
Nunca eu fui outra coisa que uma visão incorpórea, despida
de toda a alma salvo um vago ar que passou e que via.