Page 159 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
cientemente fresco, baixo as pálpebras depois de ter visto,
esqueço a face depois de ter sentido. Não fico melhor, mas
fico diferente. Ver-me liberta-me de mim. Quase sorrio, não
porque me compreenda, mas porque, tendo-me tornado ou-
tro, me deixei de poder compreender. No alto do céu, como
um nada visível, uma nuvem pequeníssima é um esqueci-
mento branco do universo inteiro.
Ninguém ainda definiu, com linguagem com que com-
preendesse quem o não tivesse experimentado, o que é o té-
dio. O a que uns chamam tédio, não é mais que aborreci-
mento; o que a outros o chamam, não é senão mal-estar; há
outros, ainda, que chamam tédio ao cansaço. Mas o tédio,
embora participe do cansaço, e do mal-estar, e do aborreci-
mento, participa deles como a água participa do hidrogênio
e oxigênio, de que se compõe. Inclui-os sem que a eles se
assemelhe.
Se uns dão assim ao tédio um sentido restrito e incom-
pleto, um ou outro lhe presta uma significação que em certo
modo o transcende — como quando se chama tédio ao des-
gosto íntimo e espiritual da variedade e da incerteza do mun-
do. O que faz abrir a boca, que é o aborrecimento; o que faz
mudar de posição, que é o mal-estar; o que faz não se poder
mexer, que é o cansaço — nenhuma destas coisas é o tédio;
mas também o não é o sentimento profundo da vacuidade das
coisas, pelo qual a aspiração frustrada se liberta, a ânsia desi-
ludida se ergue, e se forma na alma a semente, da qual nasce
o místico ou o santo.
O tédio é, sim, o aborrecimento do mundo, o mal-estar
de estar vivendo, o cansaço de se ter vivido; o tédio é, de-
veras, a sensação carnal da vacuidade prolixa das coisas. Mas