Page 161 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
Mas quê? Que há no ar alto mais que o ar alto, que não
é nada? que há no céu mais que uma cor que não é dele? que
há nesses farrapos de menos que nuvens, de que já duvido,
mais que uns reflexos de luz materialmente incidentes de um
sol já submisso? Que há em tudo isto senão eu? Ah, mas o
tédio é isso, é só isso. E que em tudo isto — céu, terra,
mundo, — o que há em tudo isto não é senão eu!
Sossego enfim. Tudo quanto foi vestígio e desperdício
some-se-me da alma como se não fora nunca. Fico só e cal-
mo. A hora que passo é como aquela em que me convertesse
a uma religião. Nada porém me atrai para o alto, ainda que
nada já me atraia para baixo. Sinto-me livre, como se dei-
xasse de existir, conservando a consciência disso.
Sossego, sim, sossego. Uma grande calma, suave como
uma inutilidade, desce em mim ao fundo do meu ser. As pá-
ginas lidas, os deveres cumpridos, os passos e os acasos de
viver — tudo isso se me tornou numa vaga penumbra, num
halo mal visível, que cerca qualquer coisa tranqüila que não
sei o que é. O esforço, em que pus, uma ou outra vez, o
esquecimento da alma; o pensamento, em que pus, uma vez
ou outra, o esquecimento da ação — ambos se me volvem
numa espécie de ternura sem sentimento, de compaixão
frusta e vazia.
Não é o dia lento e suave, nublado e brando. Não é a
aragem imperfeita, quase nada, pouco mais do que o ar que
já se sente. Não é a cor anônima do céu aqui e ali azul, frou-
xamente. Não. Não, porque não sinto. Vejo sem intenção
nem remédio. Assisto atento a espetáculo nenhum. Não
sinto alma, mas sossego. As coisas externas, que estão níti-
das e paradas, ainda as que se movem, são para mim como
para o Cristo seria o mundo, quando, da altura de tudo, Satã