Page 165 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
Não descer nunca a fazer conferências para que não se
julgue que temos opiniões, ou que descemos ao público para
falar com ele. Se ele quiser que nos leia.
De mais a mais o conferenciador semelha ator — cria-
tura que o bom artista despreza, moço de esquina da Arte.
O homem não deve poder ver a sua própria cara. Isso é o
que há de mais terrível. A Natureza deu-lhe o dom de não a
poder ver, assim como de não poder fitar os seus próprios
olhos.
Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto.
E a postura, mesmo, que tinha de tomar, era simbólica. Ti-
nha de se curvar, de se baixar para cometer a ignomínia de se
ver.
O criador do espelho envenenou a alma humana.
As cousas modernas são
(1) A evolução dos espelhos
(2) Os guarda-fatos
Passamos a ser criaturas vestidas, de corpo e
alma.
E, como a alma corresponde sempre ao corpo,
um traje espiritual estabeleceu-se. Passamos a ter a
alma essencialmente vestida, assim como passamos
— homens, corpos — à categoria de animais ves-
tidos.
Não é só o fato de que o nosso traje se torna uma parte
de nós. É também a complicação desse traje e a sua curiosa