Page 170 - Fernando Pessoa
P. 170

LIVRO  DO  DESASSOSSEGO

            pasmo  do  automatismo  meu  com  que  os outros  me  desco-
            nhecem.  Porque  atravesso  a  vida  quotidiana  sem  largar  a
            mão da ama astral, e os meus passos na rua vão concordes e
            consoantes  com  obscuros  desígnios  da  imaginação  de  dor-
            mir.  E  na  rua  vou  certo;  não  cambaleio;  respondo  bem;
            existo.

                Mas, quando há um intervalo, e não tenho que vigiar o
            curso da minha marcha, para evitar veículos ou não estorvar
            peões, quando não tenho que falar a alguém, nem me pesa a
            entrada para uma porta próxima, largo-me de novo nas águas
            do sonho,  como um barco de papel  dobrado em bicos,  e  de
            novo  regresso  à  ilusão  mortiça  que  me  acalentara  a  vaga
            consciência da manhã  nascendo entre o  som  dos carros que
            hortaliçam.


                E então, em plena vida, é que o sonho tem grandes ci-
            nemas. Desço uma rua irreal da Baixa e a realidade das vidas
            que não são ata-me, com carinho, a cabeça num trapo branco
            de  reminiscências  falsas.  Sou  navegador  num  desconheci-
            mento de mim. Venci tudo onde nunca estive. E é uma brisa
            nova esta  sonolência  com  que  posso  andar,  curvado  para  a
            frente numa marcha sobre o impossível.


                Cada qual  tem o seu  álcool.  Tenho  álcool bastante  em
            existir.  Bêbado de  me  sentir,  vagueio e  ando certo.  Se  são
            horas, recolho ao escritório como qualquer outro. Se não são
            horas,  vou  até  ao rio  fitar o rio,  como qualquer outro.  Sou
            igual. E por trás disso, céu meu, constelo-me às escondidas e
            tenho o meu infinito.




                Uma  só  coisa  me  maravilha  mais  do  que  a  estupidez
           com  que a  maioria  dos  homens  vive a  sua  vida:  é a  inteli-
            gência que há nessa estupidez.
   165   166   167   168   169   170   171   172   173   174   175