Page 169 - Fernando Pessoa
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FERNANDO  PESSOA
                          desertas dos plainos onde nunca estarei. As épocas históricas
                          passadas  são  de  pura  maravilha,  pois  desde  logo  não  posso
                          supor que se realizarão comigo. Durmo quando sonho o que
                          não há; vou despertar quando sonho o que pode haver.


                               Debruço-me, de uma das janelas de sacada do escritório
                          abandonado ao meio-dia, sobre a rua onde a minha distração
                          sente movimentos de gente nos olhos,  e os  não vê,  da dis-
                          tância da meditação. Durmo sobre os cotovelos onde o corri -
                          mão me dói, e sei de nada com um grande prometimento. Os
                          pormenores da rua parada onde muitos  andam  destacam-se-
                          me  com  um  afastamento  mental:  os  caixotes  apinhados  na
                          carroça, os sacos à porta do armazém do outro, e, na montra
                          mais afastada da mercearia da esquina,  o vislumbre das  gar-
                          rafas  daquele vinho  do Porto  que sonho  que  ninguém  pode
                          comprar. Isola-se-me o espírito de metade da matéria. Inves-
                          tigo com a imaginação. A gente que passa na rua é sempre a
                          mesma que passou há pouco, é sempre o aspecto flutuante de
                          alguém,  nódoas  de  movimento,  vozes  de  incerteza,  coisas
                          que passam e não chegam a acontecer.

                               A  notação  com  a  consciência  dos  sentidos,  antes  que
                          com  os  mesmos  sentidos...  A  possibilidade  de  outras  coi-
                          sas...  E,  de  repente,  soa,  de  trás  de  mim  no  escritório,  a
                          vinda metafisicamente abrupta do moço.  Sinto que o poderia
                          matar  por  me  interromper  o  que  eu  não  estava  pensando.
                          Olho-o, voltando-me, com um silêncio cheio de ódio, escuto
                          antecipadamente,  numa tensão de  homicídio  latente,  a  voz
                          que ele  vai  usar para me  dizer  qualquer  coisa.  Ele  sorri  do
                          fundo  da  casa e  dá-me  as  boas  tardes  em  voz  alta.  Odeio-o
                          como ao universo. Tenho os olhos pesados de supor.





                               Quando  durmo  muitos  sonhos,  venho  para  a  rua,  de
                          olhos  abertos,  ainda  com  o  rastro  e  a  segurança  deles.  E
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