Page 166 - Fernando Pessoa
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LIVRO DO DESASSOSSEGO
qualidade de não ter quase nenhuma relação com os elemen-
tos da elegância natural do corpo nem com as dos seus movi-
mentos.
Se me pedissem que explicasse o que é este meu estado
de alma, através de uma razão sensível, eu responderia mu-
damente apontando para um espelho, para um cabide e para
uma caneta com tinta.
O entusiasmo é uma grosseria.
A expressão do entusiasmo é, mais do que tudo, uma
violação dos direitos da nossa insinceridade.
Nunca sabemos quando somos sinceros. Talvez nunca
o sejamos. E mesmo que sejamos sinceros hoje, amanhã po-
demos sê-lo por coisa contrária.
Por mim não tive convicções. Tive sempre impressões.
Nunca poderia odiar uma terra em que eu houvesse visto um
poente escandaloso.
Exteriorizar impressões é mais persuadirmo-nos de que
as temos do que termo-las.
Foi sempre com desgosto que li no diário de Amiel as
referências que lembram que ele publicou livros. A figura
quebra-se ali. Se não fora isso, que grande!
O diário de Amiel doeu-me sempre por minha causa.
Quando cheguei àquele ponto em que ele diz que sobre
ele desceu o fruto do espírito como sendo "a consciência da
consciência'', senti uma referência direta à minha alma.