Page 162 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSEGO

            o tentou.  São  nada,  e  compreendendo  que  o  Cristo  se  não
            tentasse.  São nada, e não compreendo como Satã,  velho  de
            tanta paciência, julgasse que com isso tentaria.

                 Corre  leve,  vida  que  se  não  sente,  riacho  em  silêncio
            móbil sob árvores esquecidas! Corre branda, alma que se não
            conhece, murmúrio que se  não  vê para além  de  grandes  ra-
            mos caídos! Corre inútil, corre sem razão, consciência que o
            não é de nada, vago brilho ao longe, entre clareiras de folhas,
            que não se sabe de onde vem nem onde vai!  Corre, corre, e
            deixa-me esquecer!

                 Vago sopro do que não ousou viver, hausto fruto do que
            não pôde sentir, murmúrio inútil do que não quis pensar, vai
            lento,  vai frouxo,  vai  em  torvelinhos  que tens  que ter e em
            declives que te dão, vai para a sombra ou para a luz, irmão do
            mundo, vai para a glória ou para o abismo, filho do Caos e da
            Noite, lembrado ainda,  em  qualquer  recanto teu,  de que os
             Deuses vieram depois, e de  que  os  Deuses passam  também.




                 Toda a  vida  da  alma  humana é  um  movimento  na  pe-
            numbra.  Vivemos,  num  lusco-fusco  da  consciência,  nunca
            certos com o que somos ou com o que nos supomos ser.  Nos
            melhores de  nós vive a vaidade  de  qualquer coisa, e  há  um
            erro cujo ângulo não sabemos.  Somos qualquer  coisa  que  se
             passa no intervalo  de  um  espetáculo;  por  vezes,  por  certas
            portas, entrevemos o que talvez não seja senão cenário. Todo
            o mundo é confuso, como vozes na noite.

                 Estas páginas em que registro com uma clareza que dura
            para elas,  agora mesmo as  reli e  me  interrogo.  Que  é  isto,
            e para que é isto?  Quem sou quando sinto? Que coisa morro
            quando sou?
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