Page 205 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
pois basta ter que viver, um pouco de lugar ao sol e ao ar e ao
menos o sonho de que há paz do lado de lá dos montes.
Desde que possamos considerar este mundo uma ilusão
e um fantasma, poderemos considerar tudo que nos acontece
como um sonho, coisa que fingiu ser porque dormíamos. E
então nasce em nós uma indiferença sutil e profunda para
com todos os desaires e desastres da vida. Os que morrem
viraram uma esquina, e por isso os deixamos de ver; os que
sofrem passam perante nós, se sentimos, como um pesadelo,
se pensamos, como um devaneio ingrato. E o nosso próprio
sofrimento não será mais que esse nada. Neste mundo dor-
mimos sobre o lado esquerdo, e ouvimos nos sonhos a exis-
tência opressa do coração.
Mais nada... Um pouco de sol, um pouco de brisa,
umas árvores que emolduram a distância, o desejo de ser
feliz, a mágoa de os dias passarem, a ciência sempre incerta
e a verdade sempre por descobrir... Mais nada, mais nada...
Sim, mais nada...
Alguns têm na vida um grande sonho e faltam a esse
sonho. Outros não têm na vida nenhum sonho, e faltam a
esse também.
A inação consola de tudo. Não agir dá-nos tudo. Imagi-
nar é tudo, desde que não tenda para agir. Ninguém pode ser
rei do mundo senão em sonho. E cada um de nós, se deveras
se conhece, quer ser rei do mundo.