Page 210 - Fernando Pessoa
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LIVRO DO DESASSOSSEGO
Ah, é um erro doloroso e crasso aquela distinção que os
revolucionários estabelecem entre burgueses e povo, ou fi-
dalgos e povo, ou governantes e governados. A distinção é
entre adaptados e inadaptados: o mais é literatura, e má lite-
ratura. O mendigo, se é adaptado, pode amanhã ser rei, po-
rém: perdeu com isso a virtude de ser mendigo. Passou a
fronteira e perdeu a nacionalidade.
Isto me consola neste escritório estreito, cujas janelas
mal lavadas dão sobre uma rua sem alegria. Isto me consola,
em o qual tenho por irmãos os criadores da consciência do
mundo — o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o
mestre-escola John Milton, o vadio Dante Alighieri, (...)
e até, se a citação se permite, aquele Jesus Cristo que não foi
nada no mundo, tanto que se duvida dele pela história. Os
outros são de outra espécie — o conselheiro de estado Jo-
hann Wolf gang von Goethe, o senador Victor Hugo, o chefe
Lênin, o chefe Mussolini.
Nós na sombra, entre os moços de fretes e os barbeiros,
constituímos a humanidade.
De um lado estão os reis, com o seu prestígio, os impe-
radores, com a sua glória, os gênios, com a sua aura, os
santos, com a sua auréola, os chefes do povo, com o seu
domínio, as prostitutas, os profetas e os ricos... Do outro
estamos nós — o moço de fretes da esquina, o dramaturgo
atabalhoado William Shakespeare, o barbeiro das anedotas,
o mestre-escola John Milton, o marçano da tenda, o vadio
Dante Alighieri, os que a morte esquece ou consagra, e
[a] vida esqueceu sem consagrar.
Muitos têm definido o homem, e em geral o têm defi-
nido em contraste com os animais. Por isso, nas definições