Page 207 - Fernando Pessoa
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FERNANDO PESSOA
Sociologia — a inutilidade das teorias e práticas polí-
ticas.
O governo do mundo começa em nós mesmos. Não são
os sinceros que governam o mundo, mas também não são os
insinceros. São os que fabricam em si uma sinceridade real
por meios artificiais e automáticos; essa sinceridade constitui
a sua força, e é ela que irradia para a sinceridade menos falsa
dos outros. Saber iludir-se bem é a primeira qualidade do
estadista. Só aos poetas e aos filósofos compete a visão prática
do mundo, porque só a esses é dado não ter ilusões. Ver claro
é não agir.
Mais que uma vez, ao passear lentamente pelas ruas da
tarde, me tem batido na alma, com uma violência súbita e
estonteante, a estranhíssima presença da organização das
coisas. Não são bem as coisas naturais que tanto me afetam,
que tão poderosamente me trazem esta sensação: são antes
os arruamentos, os letreiros, as pessoas vestidas e falando, os
empregos, os jornais, a inteligência de tudo. Ou, antes, é o
fato de que existem arruamentos, letreiros, empregos, ho-
mens, sociedade, tudo a entender-se e a seguir e a abrir ca-
minhos.
Reparo no homem diretamente, e vejo que é tão incons-
ciente como um cão ou um gato; fala por uma inconsciência
de outra ordem; organiza-se em sociedade por uma incons-
ciência de outra ordem, absolutamente inferior à que empre-