Page 209 - Fernando Pessoa
P. 209
FERNANDO PESSOA
critério do relojoeiro imperfeito porque aqueles pormenores
do governo e ajustamento do mundo, que nos parecem lap-
sos ou sem-razões, não podem como tal, ser verdadeiramente
dados sem que saibamos o plano. Vemos claramente um pla-
no em tudo; vemos certas coisas que nos parecem sem razão,
mas é de ponderar que se há em tudo uma razão, haverá
nisso também a mesma razão que há em tudo. Vemos a ra-
zão, porém não o plano; como diremos, então, que certas
coisas estão fora do plano que não sabemos o que é? Assim
como um poeta de ritmos sutis pode intercalar um verso ar-
rítmico para fins rítmicos, isto é, para o próprio fim de que
parece afastar-se, e um crítico mais purista do retilíneo que
do ritmo chamará errado esse verso, assim o Criador pode
intercalar o que nossa estreita [razão?] considera arritmias
no decurso majestoso do seu ritmo metafísico.
Nem aceito, disse, o critério do relojoeiro sem benevo-
lência. Concordo que é um argumento de mais difícil respos-
ta, mas é-o só aparentemente. Podemos dizer que não sabe-
mos bem o que é o mal, não podendo por isso afirmar se uma
coisa é má ou boa. O certo, porém, é que uma dor, ainda que
para nosso bem, é em si mesma um mal, e basta isso para que
haja mal no mundo. Basta uma dor de dentes para fazer des-
crer na bondade do Criador. Ora, o erro esencial deste argu-
mento parece residir no nosso completo desconhecimento do
plano de Deus, e nosso igual desconhecimento do que possa
ser, como pessoa inteligente, o Infinito Intelectual. Uma coi-
sa é a existência do mal, outra a razão dessa existência. A
distinção é talvez sutil ao ponto de parecer sofistica, mas o
certo é que é justa. A existência do mal não pode ser negada,
mas a maldade da existência do mal pode não ser aceite. Con-
fesso que o problema subsiste, mas subsiste porque subsiste a
nossa imperfeição.