Page 270 - Fernando Pessoa
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LIVRO DO DESASSOSSEGO
Até (que) um dia, no fim de vários séculos, de impérios
a Igreja finalmente rua e tudo acabe...
Mas nós que não sabemos dela ficaremos ainda, não sei
como, não sei em que espaço, não sei por que tempo, vitrais
eternos, horas de ingênuo desenho pintado por um qualquer
artista que dorme há muito sob um túmulo godo onde dois
anjos, de mãos postas, gelam em mármore a idéia de morte.
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Não o amor, mas os arredores é que vale a pena...
A repressão do amor ilumina os fenômenos dele com
muito mais clareza que a mesma experiência. Há virgindades
de grande entendimento. Agir compensa mas confunde.
Possuir é ser possuído, e portanto perder-se. Só a idéia atin-
ge, sem se estragar, o conhecimento da realidade.
Ser puro, não para ser nobre, ou para ser forte, mas para
ser si-próprio. Quem dá amor, perde amor.
Abdicar da vida para não abdicar de si próprio.
A mulher uma boa fonte de sonhos. Nunca lhe toques.
Aprende a desligar as idéias de voluptuosidade e de pra-
zer. Aprende a gozar em tudo, não o que ele é, mas as idéias
e os sonhos que provoca. Porque nada é o que é: os sonhos
sempre são os sonhos. Para isso precisas não tocar em nada.
Se tocares o teu sonho morrerá, o objeto tocado ocupará a
tua sensação.
Ver e ouvir são as únicas coisas nobres que a vida con-
tém. Os outros sentidos são plebeus e carnais. A única aris-