Page 27 - Revista Ateísta | 4ª Edição
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27      ANO 2018                             OPINIÃO DE:         Francisco Marshall
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          clássicos, Heródoto e Tucídides, em regime de autonomia.   que favorece simultaneamente a religião, a violência do
          Pior que todos os males, o caos rondava a vida das cidades,   Estado e a alienação política. Heteronomia como memória
          ameaçando-as com a pavorosa dissolução da ordem, a   cultural,  eis  o  que  enfrentamos  ao  trabalhar  no  campo
          anomia, vivida em tempos de exceção, como na peste que   iluminista.
          afligiu Atenas em 431 a.C.. A reflexão sobre nomos é central
          no  pensamento grego,  e  compreende,  simultaneamente,      Significativamente, é no coração do pensamento
          filosofia, política e história.                esclarecido que surge, da melhor forma possível, o conceito
                                                         de heteronomia, quando Immanuel Kant (1724-1804)
                 Apesar de toda a elaboração semântica em torno   retoma a palavra autonomia, dando-lhe sentido ético.
          de nomos, consistente com o desenvolvimento da vida na   Para este filósofo, autonomia é a liberdade moral de uma
          pólis e da construção de um direito positivo, deliberado,   consciência que se determina por princípios examinados
          pactuado e exercido como norma coletiva, os gregos não   pela reflexão, em concordância com leis morais universais.
          chegaram a verbalizar este termo, heteronomia, o oposto   É condição de liberdade, e a ela se opõe a heteronomia, a
          do regime que experimentavam. Ainda pior: Atenas nutriu   sujeição a regras provindas de um terceiro (heteros, o outro),
          o filósofo que desenhou e determinou para a herança   seja ele o Estado ou a “divindade”. Liberdade e servidão, por
          histórica o melhor modelo teórico para representar e   conseguinte, podem ser descritas em termos de autonomia
          afirmar a heteronomia: Platão e sua teoria das ideias. Não à   e heteronomia, palavra criada por Kant na Crítica da razão
          toa, é no diálogo República (Politéia, i.e., Constituição), um   prática (1788). Naturalmente, o destino maior visado pela
          libelo contra a democracia, que se afirma a opção autocrática   filosofia é a liberdade e a autonomia, corolários da condição
          de Platão e se realiza a didática da teoria filosófica de maior   humana e da sociedade emancipada.
          utilidade para a história da cultura heteronômica. As
          opiniões são voláteis, como são impermanentes as formas      Cornelius Castoriadis (1922-1997) retomou a
          do mundo, diz Platão; logo, é preciso buscar a fonte do belo,   palavra autonomia para pensar a democracia (clássica
          do justo, do bem e da verdade, em algo que transcende o   e moderna), praticada por comunidades cientes de sua
          mundo e o forma a partir de modelos puros e permanentes:   qualidade como autoras de seu destino, em oposição às
          as ideias. Para Platão, lá no topo da cidade estaria o rei-  regidas por direito divino, por leis ancestrais ou pelo
          filósofo, o único capaz de interpretar corretamente a pureza   determinismo histórico (regimes totalitários); filósofo da
          das ideias e converter esta fonte em bem comum, na vida   autonomia, Castoriadis traz do mundo grego o gérmen da
          política. Revoguem-se as assembleias, volte a opinião   invenção política, como semente para as boas mutações
          trocada na ágora para o baixo mundo das formas precárias.  contemporâneas. Atualmente, o filósofo Marcel Gauchet
                                                         (1946) preserva estes conceitos para pensar um dos temas
                 A doutrina platônica das ideias foi crucial,   fundamentais da modernidade, a relação entre religião e
          na Antiguidade Tardia, para converter o Jeová bíblico   democracia. Os princípios da autonomia e da heteronomia
          em uma figura teológica examinada por argumentos de   são ética e politicamente excludentes, pois ao se aceitar
          tipo filosófico, sobretudo por Agostinho de Hipona e sua   uma ordem “divina” ou a tradição como norma, a liberdade
          escola. O casamento entre platonismo e cristianismo foi a   histórica é imediatamente suprimida, e vilipendiada
          conjunção de forças decisiva para o triunfo daquela crença   a autonomia, em prol de uma fonte inverificável e
          e sua  imposição social por  muitos séculos,  no medievo.   irresponsável.
          Entranhou-se na sociedade europeia, a partir de então, o
          terrível lastro cultural heteronômico, simultaneamente      Deste quadro emerge a conclusão necessária de
          religioso e político. Monarquias de direito divino se fizeram   que os regimes democráticos devem ser laicos e manter
          herdeiras desta trama, que avança pela modernidade   vigília contra as  pretensões políticas  religiosas,  de  tipo
          e ainda deixa vários sinais na ordem política atual. O   heteronômico. O caráter laico do Estado destina-se não a
          fundamento permanente, realizado na monarquia,   agradar a ateus e agnósticos, mas a garantir a liberdade de
          corresponde  a  esta  genealogia  política  e  cultural.  A   todos, contra violações e usurpações. Em um país acossado
          síncope entre platonismo e cristianismo deu ainda maior   por bancada evangélica, a luta pela autonomia equivale à
          poder ao que no passado se formou como cultura a partir   defesa do fundamento do Estado de direito. Mas não se
          das religiões, a heteronomia. Ao longo dos séculos, esta   trata apenas desta ameaça evidente; contra o Brasil há o
          desdobrou-se e se reproduziu como uma estrutura cognitiva   lastro de 400 anos de estado teocrático e a pretensão da
          pronta a reproduzir e plasmar sua ontologia, i.e., sua   Igreja em equiparar-se ao Estado, naturalizando-se como
          imagem do mundo, e as correspondentes epistemologias   fundamento. Pior: há o lastro cultural heteronômico,
          (teorias do conhecimento), sejam filosóficas, jurídicas ou   acima indigitado, uma memória ativa, latente, prenhe.
          políticas. O lastro religioso antigo, com amparo filosófico   Ainda falta muito para termos a felicidade e a liberdade da
          e prática histórica multimilenar, apresenta e transmite   autonomia, mas a luta continua, e seu campo é iluminado
          historicamente a força social ainda hoje predominante, e   pelas melhores inteligências da história da humanidade.
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