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29      ANO 2018                             OPINIÃO DE:         Carlos Orsi
                                                                            Escritor e jornalista





                                                               Mas, num nível profundo, instintivo, todo
                                                        ser humano é sensível à voz da evidência: são raras as
                                                        pessoas que se consideram à prova de balas ou imunes
                                                        à lei da gravidade. Mesmo o mais inveterado solipsista,
                                                        que acredita que o Universo é um produto da própria
                                                        imaginação, provavelmente hesitaria antes de chutar
                                                        com força um bloco de granito.

                                                               Se os objetivos da ação pública – por
                                                        exemplo, reduzir a miséria e a violência – forem bem
                                                        definidos, o uso de evidências, coletadas e analisadas
                                                        cientificamente, para alcançá-los tem boa chance de
                                                        assumir um caráter de princípio suprapartidário e, no
                                                        limite, quase consensual.
                                                               A abordagem certamente não representa
                                                        uma panaceia para o problema da polarização, e
                                                        nem  eliminará  as  divisões  políticas  –  não  há  como
                                                        eliminar  as  disputas  por  postos  de  poder,  e  muitos
                                    Créditos Imagens · Pixabay e Ateísta
                                                        dos objetivos escolhidos para as políticas ainda devem
          as próprias derrotas como vitórias e as vitórias do  continuar presos a visões de mundo apriorísticas –
          adversário, como derrotas; pelo uso seletivo, quando  mas o respeito pela evidência deve, ao menos, dotar as
          não pela falsificação, dos dados; pela manipulação  partes da disputa de uma linguagem comum, em que
          retórica de sentimentos e emoções, à revelia dos fatos.  discordâncias poderão ser tratadas de modo racional –
          Não é difícil imaginar a apropriação ideológica do  ou tão racional quanto as paixões humanas, alimentadas
          rótulo  “política  pública  baseada  em  evidências” por  por vieses cognitivos, permitirem.
          iniciativas que serão tudo, menos isso.
                                                               Uma maior valorização da evidência também
                 É por essa razão que comunidades organizadas  teria o efeito salutar de exigir mais transparência do
          já comprometidas com uma visão de mundo baseada no  poder público em seus planos e ações: uma conclusão
          respeito à melhor evidência disponível deveriam tomar  baseada em evidências deve, afinal, ser reprodutível.
          consciência do potencial do uso legítimo da evidência  Mas, para isso, a evidência deve estar disponível
          no jogo político, e mobilizarem-se em sua defesa.   para que qualquer cidadão cético possa checá-la.
                                                        Novos canais de diálogo e verificação seriam uma
                 Os  princípios  da  política  pública  baseada  consequência natural.
          em  evidências  são  fáceis  de  enunciar.  Consistem
          na compilação de evidências sobre o que funciona,     Mencionei vieses cognitivos já algumas vezes.
          seus custos e benefícios; monitoração dos resultados  Não é difícil citá-los para argumentar que, no fim,
          e impactos dos programas; uso da evidência para  acreditar na possibilidade de políticas públicas baseadas
          aperfeiçoar  programas,  ampliar  o  que  funciona  e  em evidências é apenas uma forma de disfarçar
          abandonar o que não funciona; encorajar a inovação e  opções ideológicas. Que, afinal,  “imparcialidade” e
          o teste empírico de novas abordagens.         “objetividade” são metas inatingíveis.

                 Uma política pública baseada em evidências     A crítica tem lá sua razão de ser, mas
          opera de duas formas: baseando-se no melhor  abandonar o projeto de uma política baseada em
          conhecimento científico disponível  ao ser elaborada,  evidências por causa disso é como desistir de enxugar
          e gerando os dados que serão usados em seu próprio  o chão da cozinha porque é impossível enxugar o Rio
          aperfeiçoamento – ou na elaboração de suas sucessoras.  Amazonas.  Não  há  contradição  em  reconhecer  que
          Num mundo cada vez mais polarizado, bases  determinado alvo é inatingível e, ainda assim, buscar
          robustas de evidência talvez sejam a única forma de  aproximar-se ao máximo dele.
          construir pontes entre pontos de vista aparentemente
          irreconciliáveis.                                    Uma vez assimilada a frustração com a
                                                        impossibilidade de se atingir imparcialidade ou
                 É fácil pressupor que a polarização atual  objetividade perfeitas e abandonada a arrogância que
          condenou-nos todos a viver em bolhas ideológicas  esse tipo de expectativa traz, nada nos impede de, com
          estanques e isoladas, entre as quais a única forma de  firmeza e humildade, perseguir o melhor possível –
          comunicação possível é o confronto.           guiados pelas melhores evidências.
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