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O doping dos pobres
Parte da minha família é da zona rural e lá está até hoje. Na roda de conversas, chimarrão
girando de mão em mão, os tios com um cigarro de palha pendurado no canto da boca, ficava
encasquetada com um comentário recorrente. Toda prosa começava com o preço da soja ou
do trigo, evoluía para a fúria da geada do inverno daquele ano, quicava por quanto fulano e
beltrano estavam plantando e, por fim, chegava ao ponto que me interessava.
Eu era um toco de gente, mas sentada num banquinho ao pé dos adultos e do fogão a
lenha, não havia nada que me arrancasse dali. Depois desses assuntos chatérrimos, que eu
suportava com brios de filósofo estoico, finalmente minhas tias começavam a atualizar meus
pais sobre as fofocas locais. Invariavelmente havia alguém que tinha descarrilado. Vinha
então a voz meio sussurrada, em tom de sentença: “Fulana sofre dos nervos”.
Pronto, estava tudo explicado. Menos para mim. Eu não entendia o que eram os tais dos
nervos. Só sabia que eles eram os culpados por alterar a ordem daquele pequeno mundo
rural. Depois de “atacadas dos nervos”, pessoas até então trabalhadeiras, de repente, não
achavam mais que acordar às 4h da madrugada para tirar leite de vaca e plantar soja era a
vida que tinham pedido a Deus. Mulheres sensatas largavam as panelas e os filhos ao vento
e recusavam-se a juntar o marido bêbado no bolicho do povoado. Rebelavam-se. Por culpa
dos nervos.
Eu criava ouvidos de Dumbo — não para voar, mas para ficar plantada bem ali, ouvindo
até o zum-zum das varejeiras tentando alcançar as bolachas de confeito branco, paridas na
cozinha das tias para as visitas do domingo. Só raramente alguém notava meus olhos de
bolinha de gude e fazia sinal para mudar de assunto. Naquelas noites, eu nem dormia. Parte
por causa dos borrachudos que tinham esfolado a minha pele. Parte por causa do mistério
dos ataques de nervos. Será que eu também tenho nervos?, matutava. De manhã,
perguntava a um e outro, mas ninguém dava uma explicação convincente. Nervos eram
nervos e pronto. E não eram assunto de criança.
Cresci, apalpei outras geografias, mas revisito aquele mundo rural sempre que possível.
Nas minhas recentes passagens por lá, descobri que os nervos desapareceram. Não há mais
nervos em parte alguma. Agora há depressivos e vítimas de pânico. E, em vez de ataques de
nervos, as pessoas têm crises de ansiedade. Antes, o contra-ataque se dava por um arsenal
de chás e ervas de nomes estranhos. Mesmo na cidade, não tinha nada que o finado Chico