Page 27 - C:\Users\Leal Promoções\Desktop\books\robertjoin@gmail.com\thzb\mzoq
P. 27

O doping dos pobres















        Parte da minha família é da zona rural e lá está até hoje. Na roda de conversas, chimarrão
        girando de mão em mão, os tios com um cigarro de palha pendurado no canto da boca, ficava
        encasquetada com um comentário recorrente. Toda prosa começava com o preço da soja ou

        do trigo, evoluía para a fúria da geada do inverno daquele ano, quicava por quanto fulano e
        beltrano estavam plantando e, por fim, chegava ao ponto que me interessava.

          Eu era um toco de gente, mas sentada num banquinho ao pé dos adultos e do fogão a
        lenha, não havia nada que me arrancasse dali. Depois desses assuntos chatérrimos, que eu
        suportava com brios de filósofo estoico, finalmente minhas tias começavam a atualizar meus

        pais sobre as fofocas locais. Invariavelmente havia alguém que tinha descarrilado. Vinha
        então a voz meio sussurrada, em tom de sentença: “Fulana sofre dos nervos”.

          Pronto, estava tudo explicado. Menos para mim. Eu não entendia o que eram os tais dos
        nervos. Só sabia que eles eram os culpados por alterar a ordem daquele pequeno mundo
        rural. Depois de “atacadas dos nervos”, pessoas até então trabalhadeiras, de repente, não

        achavam mais que acordar às 4h da madrugada para tirar leite de vaca e plantar soja era a
        vida que tinham pedido a Deus. Mulheres sensatas largavam as panelas e os filhos ao vento

        e recusavam-se a juntar o marido bêbado no bolicho do povoado. Rebelavam-se. Por culpa
        dos nervos.
          Eu criava ouvidos de Dumbo — não para voar, mas para ficar plantada bem ali, ouvindo

        até o zum-zum das varejeiras tentando alcançar as bolachas de confeito branco, paridas na
        cozinha das tias para as visitas do domingo. Só raramente alguém notava meus olhos de

        bolinha de gude e fazia sinal para mudar de assunto. Naquelas noites, eu nem dormia. Parte
        por causa dos borrachudos que tinham esfolado a minha pele. Parte por causa do mistério
        dos  ataques  de  nervos.  Será  que  eu  também  tenho  nervos?,  matutava.  De  manhã,

        perguntava a um e outro, mas ninguém dava uma explicação convincente. Nervos eram
        nervos e pronto. E não eram assunto de criança.

          Cresci, apalpei outras geografias, mas revisito aquele mundo rural sempre que possível.
        Nas minhas recentes passagens por lá, descobri que os nervos desapareceram. Não há mais
        nervos em parte alguma. Agora há depressivos e vítimas de pânico. E, em vez de ataques de

        nervos, as pessoas têm crises de ansiedade. Antes, o contra-ataque se dava por um arsenal
        de chás e ervas de nomes estranhos. Mesmo na cidade, não tinha nada que o finado Chico
   22   23   24   25   26   27   28   29   30   31   32