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Na passagem do tempo, descobri que também eu tinha os tais dos nervos. Desde criança,
convivo com as muitas dores de existir. Como quase todo mundo. Às vezes “a vida dói como
uma afta”. Mas talvez raramente seja caso de antidepressivo. Assim como nossas palpitações
de ansiedade nem sempre são patologias ou as noites de insônia são doença. Sentimos
tristeza, melancolia, angústia, medo. Vivemos lutos, tanto pela perda de quem amamos
quanto pela perda de amantes, assim como pelas pequenas perdas de cada dia.
A dor é parte da vida. O fascinante na espécie humana é que conseguimos transformar dor
em criação. Elaboramos nossas muitas dores criando poesia, pintura, escultura, música,
vestidos, bordados, artesanato, culinária, cinema, móveis, teatro, ciência, histórias. Cada um
à sua maneira muito particular. Se em vez de elaborar a dor e transformá-la em expressão,
tomamos comprimidos que conseguem apenas nos embotar por um tempo, o que estamos
fazendo com nós mesmos e com o nosso mundo?
Se você pega seis ônibus lotados por dia, trabalha 15 horas, é humilhado pelo seu chefe,
mora num barraco e não tem dinheiro para pagar as contas, você tem depressão porque não
encontra mais forças para suportar esse cotidiano ou tem um transtorno mental porque não
consegue dormir? Não. Não é preciso ser médico para saber que ninguém pode estar bem
em condições de vida como essas. Seria preocupante se estivesse. A alternativa não é se
entupir de tarjas-pretas, mas criar um jeito de lutar por uma existência mais digna,
pressionar o poder público, formar uma associação comunitária para exigir seus direitos,
construir um projeto de vida com aquilo que é possível e brigar por aquilo que precisa se
tornar possível.
Ser protagonista e ser parte da transformação é ter saúde. Não há nada mais aniquilador
do que o sentimento de impotência. E, quando a questão é esta, tomar remédios como se
sua dor não fosse legítima, não tivesse causas reais que precisam ser escutadas e mudadas,
é acentuar o abismo da impotência. É o contrário de saúde. Por isso, fico muito preocupada
quando entro nas casas e os moradores me mostram suas pílulas em latas de comida.
Tenho o privilégio de acompanhar o movimento literário das periferias do Brasil. Em
especial, o sarau da Cooperifa, na zona sul de São Paulo. Das mais diversas regiões da Grande
São Paulo, toda noite de quarta-feira, centenas de pessoas, a maioria delas pobres, alcançam
o bar do Zé Batidão para ouvir e fazer poesia. Sérgio Vaz, o criador da Cooperifa, pode passar
horas contando sobre gente que chegou lá aniquilada, com a espinha dobrada, a vida por
um triz. E, ao ser escutada, sentir-se parte, transformou-se. Gostaria que alguém fizesse uma
pesquisa de saúde mental entre grupos que pertencem a saraus de poesia, rodas de samba,
posses de hip-hop, oficinas de arte, associações comunitárias e a população que não
pertence a nada, nem a si mesma.
Penso que o conceito de saúde — e de saúde mental — não existe se não abarcar projeto
de vida.