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necessária. Quando já estão em meio à natureza selvagem, a externa e a de si mesmos, o
garoto lembra que costumava observar as cores dos carros que passavam com seu pai. E diz
a Fredricksen: “Eu sei que é chato, mas são as coisas chatas as que eu mais me lembro”.
É um exercício que vale a pena empreender. Do que você se lembra, o que guardou por
todos esses anos? Ouso apostar que, como Russell, você também guarda na sua caixa de
joias da memória as “coisas mais chatas”, as supostamente banais. Eu fiz esse exercício.
Lembrei-me de uma cena, repetida em muitos domingos da minha infância, que pode ser
considerada ultrajantemente prosaica.
Quase todo domingo, meus pais nos botavam no fusca verde-milico (depois substituído
por uma Brasília verde-limão). Partíamos felizes para um programa que eu adorava.
Chamava-se “ver as casas bonitas”. Eu ficava no meio, por ser a caçula, espremida entre
meus dois irmãos. Embora atrapalhasse um pouco a vista, eu gostava porque me sentia
quentinha. E então percorríamos o mesmo roteiro que já sabíamos de cor. Invariavelmente
fazíamos os mesmos comentários. E cada um de nós tinha a “sua” casa, aquela que
considerava “a MAIS bonita de todas”.
Em geral, quem tinha “casas bonitas” em Ijuí eram os médicos, os dentistas e os
empresários que haviam se dado bem no tal do “milagre” econômico da ditadura militar.
Como se pode imaginar, a cidade não era exatamente um polo de expansão imobiliário.
Demorava para aparecer algo novo no nosso roteiro. Quando acontecia, nós
acompanhávamos com rigorosa atenção cada passo da construção do que nos parecia uma
mansão. Se o arquiteto tivesse nos ouvido, algumas imperfeições teriam sido corrigidas a
tempo. Quando finalmente alguma casa era concluída, para mim era uma final de Copa do
Mundo com placar de 5x0 contra a Argentina.
Meu pai dava uma paradinha discreta, para não chamar a atenção dos donos. A gente
olhava e se assombrava. Junto com isso vinha uma sociologia caseira. Cada casa motivava
uma avaliação de como fulano tinha ganhado tanto dinheiro de repente. Ou, ao contrário,
algum pequeno drama que havia obrigado sicrano a interromper uma construção que nos
prometia grandes momentos.
A vistoria das casas bonitas acontecia no finalzinho da tarde de domingo e acabava junto
com a luz do sol. Depois, voltávamos para a nossa casa bem menos bonita, mas iluminada
por dentro. Não havia nenhuma inveja nesse olhar. A gente só gostava de ver coisas bonitas.
E eu de tentar imaginar o que acontecia lá dentro, como viviam as pessoas bonitas das casas
bonitas.
Foi disso que eu lembrei, acordada pela frase de Russell. Era tão estúpido e, ao mesmo
tempo, tão sensacional. Voltei então ao presente. Há algum tempo, não muito, descobri que
a maior aventura de todas é amar alguém que escolhemos — e que nos escolhe. O amor é
sempre território não desbravado. Entregar-se a ele com toda a verdade de que somos