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se capaz de entregar-se ao galope desenfreado de um pampa imaginário. Afinal, quem diz o
que é um cavalo ou o que é um cabo de vassoura?
Vanderlei é um exemplo radical de reinvenção da vida. Nem todos, porém, são capazes de
enxergar com a larga liberdade de Vanderlei. Nem todos viveram todas as suas faltas. O que
podemos é escolher se vamos olhar com generosidade para a nossa vida — e para a vida do
outro — ou se vamos gastá-la inteira nos lamuriando de nossa pouca sorte.
Qualquer um pode escolher como olhar para si mesmo. Todo homem e toda mulher
contêm em si pelo menos dois espelhos: um deles o reflete como silhueta sem rosto definido,
manchada na multidão, destituída de importância; o outro o revela único, singular, um
evento histórico irrepetível. É o mesmo homem ou mulher que pode olhar apenas para o
chão e se identificar com a meleca que cola nos seus sapatos ou olhar para cima e se
reconhecer na matéria das estrelas.
Ambas as identificações são fatos comprovados pela ciência. Basta escolher em que
espelho cada um prefere se reconhecer. Parece-me no mínimo curioso que uma parte
considerável das pessoas escolhe se identificar com a meleca. E viver de acordo.
De certo modo, temos todos a escolha de ser Cheherazade, a moça esperta das mil e uma
noites, que decidiu contar histórias para manter a narrativa da sua própria. Ou podemos ser
todas as moças não muito espertas que perderam a cabeça antes dela porque deixaram que
o sultão decidisse o fim da sua história.
26 de outubro de 2009
4 As melhores crônicas semanais sobre a extraordinária vida comum se transformaram no livro A vida que ninguém vê (Arquipélago Editorial), ganhador do
Prêmio Jabuti de Melhor Livro de Reportagem (2007).