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O livro de Maria Rita Kehl é complexo e vai muito além dessas minhas primeiras
interpretações. Uma das questões mais instigantes é a relação entre a depressão e o tempo.
O depressivo seria também aquele que se recusa a se inserir no tempo do outro. O nome do
livro — O tempo e o cão — vem da experiência pessoal da psicanalista, ao atropelar um
cachorro na estrada. Ela viu o cachorro, mas a velocidade em que estava a impedia de parar
ou desviar completamente dele. Conseguiu apenas não matá-lo. Logo, o animal,
cambaleando rumo ao acostamento, ficou para trás no espelho retrovisor.
É isso o que acontece com as nossas experiências na velocidade ditada pela nossa época.
Diz Maria Rita: “Mal nos damos conta dela, a banal velocidade da vida, até que algum mau
encontro venha revelar a sua face mortífera. Mortífera não apenas contra a vida do corpo,
em casos extremos, mas também contra a delicadeza inegociável da vida psíquica. (...) Seu
esquecimento (do cão) se somaria ao apagamento de milhares de outras percepções
instantâneas às quais nos limitamos a reagir rapidamente para, em seguida, com igual
rapidez, esquecê-las. (...) Do mau encontro que poderia ter acabado com a vida daquele cão,
resultou uma ligeira mancha escura no meu para-choque. (...) O acidente da estrada me fez
refletir a respeito da relação entre as depressões e a experiência do tempo, que na
contemporaneidade praticamente se resume à experiência da velocidade”.
Penso que talvez sejamos, também, o próprio cachorro. Sempre cambaleando num mundo
que nos atropela, num mundo cheio de atropeladores que têm tanto medo quanto nós.
Somos esse vira-lata cambaleando e às vezes caindo, com tanto medo que terminem de nos
atropelar, que às vezes morremos antes de medo que do atropelamento.
Será que essa é a única narrativa possível para a nossa vida? Como atropelador ou como
cachorro atropelado ou quase atropelado ou com medo de ser atropelado?
Por coincidência, estava zapeando na TV, quando encontrei a psicanalista no Café
Filosófico da TV Cultura. Lá, ela fez algumas considerações muito interessantes. Anotei duas
delas para acrescentar a esta coluna. “Nos dizem que ‘tempo é dinheiro’. Ora, tempo não é
dinheiro. Dizer que tempo é dinheiro é uma violência”, afirmou Maria Rita (citando o
professor Antonio Candido). “Tempo é o tecido de nossas vidas.” E um pouco mais adiante:
“Em qualquer sociedade, o poder se instaura por alguma forma de controle do tempo”.
Quem quiser ler o livro de Maria Rita Kehl precisa saber que é um livro difícil. Não se lê
fácil como uma daquelas obras de autoajuda. Exige tempo, parada, reflexão. Para quem é
leigo, é preciso ler e reler alguns trechos, voltar. Talvez até pular algumas partes que, depois
de ler e voltar e reler, ainda assim não alcançamos. Mas vale todo o esforço.
Aprendi algo sobre isso, recentemente, ao ouvir Benjamin Moser, autor de Clarice, (Cosac
Naify), uma excelente biografia de Clarice Lispector. Ele contou que os livros que mais gosta
da escritora são os mais difíceis, aqueles que teve de ler para escrever a biografia, e não os