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O depressivo na contramão















        Em  seu  último  livro,  O  tempo  e  o  cão  —  A  atualidade  das  depressões  (Boitempo),  a
        psicanalista Maria Rita Kehl nos provoca com uma hipótese sobre a qual vale a pena pensar:
        a depressão, que vem se tornando uma epidemia mundial desde os anos 70, pode ser a

        versão contemporânea do mal-estar na civilização. Ela teria algo a dizer sobre a forma como
        estamos vivendo e sobre os valores da nossa época. Para além da patologia, a depressão

        pode ser vista também como um sintoma social.
          O que nossa época nos exige? Euforia, confiança, velocidade. Temos de ser proativos. O
        que  ela  nos  promete?  Se  soubermos  traçar  nossas  metas  e  construir  nossa  estratégia,

        atingiremos o sucesso. Se produzirmos e consumirmos, alcançaremos a felicidade. Ser feliz
        deixou de ser uma possibilidade esporádica para se tornar uma obrigação permanente. Para

        nós, seres dessa época, nada menos que o gozo pleno. Fora disso, só o fracasso. E o fracasso,
        este é sempre pessoal. Se não alcançamos o que nos prometeram no final do arco-íris, é
        porque cometemos algum erro no caminho. E fracassar, como sabemos, passou a ser não

        um fato inerente à vida, mas uma vergonha.
          O depressivo, nesse contexto, é a voz dissonante. É o cara na contramão atrapalhando o

        tráfego, como na letra de Chico Buarque. Como diz Maria Rita, é aquele “que desafina o coro
        dos contentes”. Ela afirma, logo no início do livro: “Analisar as depressões como uma das
        expressões do sintoma social contemporâneo significa supor que os depressivos constituam,

        em seu silêncio e em seu recolhimento, um grupo tão ruidoso quanto foram as histéricas no
        século 19. A depressão é a expressão do mal-estar que faz água e ameaça afundar a nau dos

        bem-adaptados  ao  século  da  velocidade,  da  euforia  prêt-à-porter,  da  saúde,  do
        exibicionismo e, como já se tornou chavão, do consumo desenfreado”.
          Nesse sentido, a mera existência do depressivo aponta, nas palavras da psicanalista, a má

        notícia que ninguém quer saber. Se basta ser proativo, bem-sucedido e saudável, por que
        tantos e cada vez mais, como mostram as estatísticas, são classificados como depressivos?

          “A depressão”, diz Maria Rita, “é sintoma social porque desfaz, lenta e silenciosamente, a
        teia de sentidos e de crenças que sustenta e ordena a vida social dessa primeira década do
        século 21. Por isso mesmo, os depressivos, além de se sentirem na contramão do seu tempo,

        veem sua solidão agravar-se em função do desprestígio social da sua tristeza”.
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