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inteligentes, conversas banais, respiro cômico e também esquecimentos. E são os cortes no
        momento da edição que vão garantir o ritmo do filme.

          Hoje não tenho a menor paciência com gente de 40 anos — ou mesmo de 20 ou 30 — que
        continua culpando a mãe, o pai ou as agruras da infância por tudo o que pensa que deveria
        ter  conquistado  e  não  conquistou.  Ou  gente  que  culpa  o  chefe  ou  a  suposta  falta  de

        oportunidades por tudo o que deveria ser profissionalmente e não é. Como se sua história
        fosse medíocre por culpa do mundo, e quem a vive não tem nada a ver com isso. Só estava

        passando quando virou personagem de um conto do vigário.
          Gente assim gasta a vida repetindo a mesma ladainha, contando a mesma história para si
        mesmo — e para os outros. É um disco quebrado. Como a vida vai mudar se o dono da

        história só enxerga um enredo possível? Ao observar esse tipo de personagem percebi que,
        na verdade, ele não quer mudar. Só diz que quer — e afirma não conseguir por fatos externos

        à sua vontade.
          A  história  é  chata,  dá  sono  no  meio,  mas  é  segura.  Gente  assim  morre  de  medo  do
        desconhecido. Prefere uma existência de vítima do mundo ao risco de enxergar-se de outro

        modo. Mas há um momento em que é preciso responsabilizar-se pela vida, por contar a
        própria história. Ou ficar para sempre refém de versões alheias.

          Quem me ensinou que a vida pode ser reinventada a qualquer momento foram as pessoas
        que, nas últimas duas décadas, me contaram suas histórias. Quando escrevia uma coluna
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        semanal chamada “A vida que ninguém vê” , conheci um homem que ilustra como ninguém

        essa ideia. Vanderlei era o seu nome. E ele era aquele tipo de gente que costumamos reduzir
        a personagem folclórico.

          Muito pobre e um tanto estropiado, todo ano ele aparecia na Expointer, a maior feira
        agropecuária do Rio Grande do Sul, com um cabo de vassoura. Dizia que o cabo de vassoura

        era seu cavalo de raça. Passava pela inspeção veterinária, cumpria os trâmites burocráticos.
        E lá ficava cavalgando pelos campos da exposição. Os “normais” da feira achavam muita
        graça, tanta que até alimentavam-no e deixavam que dormisse por ali. Vanderlei era “o

        louquinho da Expointer”.
          Um  dia,  emparelhei  meu  cavalo  com  o  dele.  Perguntei:  “Vanderlei,  você  é  louco?”.  E

        começamos a conversar. A certa altura ele disse: “Você acha que eu não sei que meu cavalo
        é um cabo de vassoura? Mas pensa, raciocina (e batia a mão fechada na cabeça). Eu nunca
        vou ter um cavalo de verdade. Você não acha melhor eu acreditar que o cabo de vassoura é

        um cavalo?”. Só me restou o silêncio. Se ele era louco, eu era o quê?
          Vanderlei desejava tanto um cavalo que deu patas, crinas, carne, ossos e sangue a um cabo

        de vassoura. Reinventou sua vida da maneira que lhe foi possível. Com a infinita liberdade
        conquistada, para Vanderlei tanto fazia se era um cavalo ou um cabo de vassoura. Tornara-
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