Page 86 - Livro Conto 01
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1º Conto: Laços afetivos                                                     enContro, desenContro e reenContro


            ― Eu estou fazendo um desabafo. Creio que ainda hoje estou aqui,
       peregrinando em tais condições, porque não fui capaz de esquecer o mal que
       meus pais me fizeram ― Prosseguiu dona Salvina: ― Eu conheci um rapaz,
       ele se chamava Salomão. Namorávamos às escondidas, porque meus pais ja-
       mais aceitariam tal namoro. Ele era filho de um carpinteiro, de família humil-
       de, eu estava estudando para ser médica daquela cidadezinha minúscula; era
       o sonho dos meus pais que eu me tornasse médica, advogada, profissões que
       exaltassem o seu sobrenome, Rocha. Todos nos conheciam, quando chegava
       um Rocha, aonde quer que fosse era sempre bem recebido, respeitado.

            Continuou Salvina com voz embargada: ― Quando ouvi o diálogo de
       vocês, falando do passado de luta, de brigas, de ódio lembrei, sim, do meu
       passado infeliz, porque ainda hoje não pude aceitar que os meus pais preferi-
       ram tirar-me da faculdade de medicina e internar-me num convento, a ter que
       me verem casada e mãe dos filhos de um carpinteiro. Foi uma grande decep-
       ção, foi uma grande infelicidade. Eu que não queria, jamais, ser católica, mui-
       to menos, freira, que tinha uma simpatia enorme pela Doutrina Espírita e até
       estudava. No convento, na cidade para onde fui levada, jamais queria aceitar
       as normas, a disciplina rígida a mim imposta pelas irmãs daquele convento. O
       tempo passou, meu pai vinha me ver duas vezes ao ano, sempre reafirmando
       e fortalecendo às dirigentes do convento a dureza para comigo. Não queria
       ter surpresas, ficar sabendo que teria fugido. Essa conversa eu ouvi. Passei
       mais de quarenta anos no convento.
            As lembranças continuavam vivas em sua memória e ela falava como se
       estivesse vendo e vivendo tudo de novo: ― O desencarne dos meus pais ocor-
       reu num acidente de carro, quando iam fazer-me a última visita. Uma tragédia.
       Depois disso, saí para nunca mais retornar àquela masmorra. Para mim foi uma
       prisão forçada. Retornei para o lar da minha família. Era filha única. Fiquei no
       lar deles. Meus pais tinham uma empresa, à qual passei a administrar, e tudo
       que pude fazer para ajudar o próximo com o dinheiro que eles deixaram, eu
       fiz. Claro, com um recurso que não era meu, na verdade foi uma aquisição dos
       meus pais, mas o patrimônio tornou-se meu por direito constituído pelas leis
       civis. ― com um certo brilho no olhar prosseguiu ― Eu decidi vender e repartir
       toda riqueza. Mandei fazer uma casa para os funcionários da empresa que não



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