Page 31 - Jornal Gueto 2017
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SISTAS NO RAP todos os dias nesta sociedade que só nos sabe Mulher, Raça e Classe dam conhecer a sua condição histórica e racial,
mandar a baixo. Muita coisa para mandar cá para resistirem à colonização do pensamento
por Angela Davis.
p´ra fora. Muita luta nossa. feminista ocidental.
À pouco tempo comecei a ver a grande im-
Outra coisa que ouço muito, são manas a Para as negras e para os negros que queiram
portância do rap nas nossas vidas. Comecei a
mandar outras manas a baixo. E isso, a meu Publicado em 1982 por Angela Ivonne Da- conhecer sobre as experiências políticas vivi-
prestar atenção na sua mensagem, na sua in-
ver, entre outras coisas, é muito lixo sonoro vis, “Woman, Race & Class” é um clássico na das por mulheres negras norte-americanas,
tervenção, na forma como o podemos usar na
que estão ouvir do lado dos manos, muitas ar- lista de livros de leitura recomendada na con- recomendamos a leitura nesta tradução livre
nossa luta, e não só. E cada vez mais sigo e
madilhas que a sociedade faz para nós, e que strução do pensamento negro. Nascida a 26 de disponível no site da plataforma.
presto atenção a esta arte e forma de inter-
muitas continuam a cair. Muitos anos de ouvir janeiro de 1944 em Alabama, Angela estudou
venção, aos seus artistas e suas intervenções.
a sociedade a dizer que as mulheres são isto, literatura francesa em Nova York, foi aluna de
E pouco a pouco fui entendendo as suas pala-
que as mulheres são aquilo, que as mulheres Adorno e Negt na Alemanha e estudou ain-
vras, a sua história, as suas lutas. Com algumas Ser Mulher. Ser Negra. Ser
não são unidas. Já pensaram que essa é uma da em Paris. De regresso aos E.U.A. estudou
me identificava, com outras nem tanto, com Feminista. “Ain´t I a Wom-
desunião que convém a muita gente? filosofia. Foi militante do Partido Comunis-
outras não me identificava de todo. A maioria
Nenhuma mulher é obrigada a gostar de todas ta e por isso proibida de dar aulas na facul- an. Black Woman and Fem-
eram histórias que eu via, mas não sentia na
as mulheres, a concordar com o que esta ou dade. Intensificando a sua ação política An- inism” de Bell Hooks
pele, logo, não me identificava.
aquela mulher fazem, mas nenhuma mulher gela tornou-se militante dos Black Panthers
Por isso comecei a procurar manas que
tem direito de ser opressora. A nossa luta de- e foi mundialmente conhecida quando entrou
também estivessem no movimento, manas que
veria ser contra opressão da mulher, e não faz- na lista de procurados do F.B.I., acusada de
estivessem no movimento aqui, em Portugal,
er parte dessa mesma opressão, independente fornecer armas num protesto realizado pelos
alguém com quem eu pudesse me identificar,
da vossa percepção do que é ser mulher. Black Panthers ao plenário da Assembleia
alguém que pudesse ouvir e sentir, “yah, eu sei Bell hooks (Gloria Watkins) nasceu em
Seriamos certamente todas mais fortes se fos- Legislativa da Califórnia em 1970. Kentucky nos Estados Unidos da América
o que é isso”, “concordo com isso”, “não con-
semos unidas. E não é essa a mensagem que O livro “Woman, Race & Class” essencial na
cordo”, tudo o que não ouvia da outra parte, e numa família com seis filhos (cinco raparigas
ouço por parte da maioria das sistas no mov- afirmação do pensamento negro feminino e um rapaz) de educação sexista. Escolheu
precisava ouvir. A procura foi grande, os re-
imento. projeta as mulheres negras na história política
sultados nem por isso. para si o nome bell hooks em memória à sua
Vou seguindo o trabalho de todas as manas norte-americana, mostrando que lhes é dev-
Quantas manas ouvimos nos dias de hoje no avó materna e por ser identificada com ela por
que sei que estão no movimento, porque sinto ido o movimento dos direitos das mulheres. ter “resposta na ponta da língua”. Intelectual
rap? Aqui, em Portugal?
necessidade de como mulher, dar o meu apoio. Demonstra-nos como nos dias de hoje nos
Eu, ouço poucas, pouquíssimas. Pode até ha- negra, académica, licenciou-se em inglês pela
O meu entusiasmo vai subindo, devagar, mas E.U.A. ainda está por alcançar a liberdade das Universidade de Standford e doutorou-se em
ver mais, mas onde estão? Eu procurei e não
vai. Espero vir a surpreender-me, na positiva. negras e dos negros, embora se assinalem mar-
encontrei. Portanto devo dizer que a minha cos como o fim da escravatura, o fim do lin- literatura pela Universidade de California
procura não foi satisfatória. Santa Cruz. Já escreveu mais de trinta livros
Mantenham-se focadas. chamento ou se celebrem consagrações como e com 19 anos escreveu o livro “Ain’t I a
Das poucas manas que encontrei, e passei
o direito ao voto, à contraceção, ao aborto e ao
tempo a ouvir, com poucas me identifiquei. Woman” com o objetivo de documentar o
trabalho assalariado.
Muitas vezes reconheci a história, das barbari- impacto do sexismo no estatuto social das
Se é para nós evidente que a história do povo
dades que ouço na rua diariamente, mas com a negro é destorcida e apagada, o livro “Wom- mulheres negras.
qual estava longe de me identificar ou mesmo bell hooks mostra-nos como é importante
an, Race & Class” evidencia-nos que dentro
concordar. Outras vezes pareceu-me estar a para as mulheres negras terem voz na luta
da parca produção escrita sobre o povo negro,
ouvir a palavras que ouvia nos sons dos manos, contra o sexismo. Por isso afirma no título do
foi dada pouca atenção à história das mulheres
cantadas por uma mulher. Só recentemente seu livro a voz do discurso de que no século
negras, com a agravante de se ter reforça-
foram aparecendo alguns trabalhos com os do falsos mitos como a tese matriarcal ou a XIX num encontro onde se discutia o direito
quais me identificava, que entendia, que con- ao voto para o povo negro, e se defendia esse
promiscuidade sexual.
cordava, que tinha prazer de ouvir. Aos poucos direito apenas para exercício dos homens
A tradução do livro “Woman, Race & Class”
vão aparecendo mais manas no movimento, e negros, pois as mulheres eram vistas como
para a língua portuguesa, respondeu à ne-
acredito que mais aparecerão. Muitas estão frágeis e incapazes de descer duma carruagem
cessidade de desenvolvermos uma prática de
ainda acanhadas, muitas estão ainda presas educação crítica, através da leitura de livros sozinhas. Perguntando repetidamente “ain’t
nas back vocals nos sons dos manos. E muitas I a woman”, Sojourner Truth se disse ser
como este, definindo um pensamento resist-
estão focadas nas cenas erradas. uma mulher ainda que trabalhasse e fosse
ente e uma ética libertadora. A leitura deste
Nós mulheres temos tanto para falar, tanto castigada como um homem e que visse os seus
livro é um entre muitos possíveis passos de
para contar, tantas opressões que enfrentamos filhos serem vendidos para serem escravos.
serem dados por mulheres negras que preten-
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