Page 47 - Cassandra
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O ESTOICISMO E O AMOR
M I G U E L M A U R I T T I
G O N Ç A L O M A T E U S
“Se estivesses numa relação de seis meses e soubesses estar comum, do utilitarismo. Sendo uma criatura racio-
que não ia dar a lado nenhum, mas, caso lhe pusesses nal (porque para o Estoico o viver corretamente, de acor-
fim, a outra pessoa ameaçasse cometer suicídio, o que do com a Natureza e virtude, é viver de maneira lógica e
farias?” racional, de maneira que apenas o Homem é capaz), o
A Estoico fará aquilo que trará, de um ponto de vista empíri-
co, o melhor desfecho geral. Pode não acreditar que isso
questão que é colocada, retirando-lhe todos os
apetrechos e ornamentos da narrativa, é se a felicidade de realmente trará mudança, mas não lhe custa tentar. O
um indivíduo é superior, igual ou inferior à vida de outro; resultado final é-lhe um indiferente.
neste caso em específico, temos uma disputa entre a felici- Seguindo essa lógica, vamos então desbravar o ter-
dade de uma pessoa que procura sair de uma relação que reno para analisar esta situação; pois se Marco Aurélio,
se tornou infeliz e venenosa, mas receia que isso leve a Séneca ou outros filósofos do passado ancião nunca passa-
outra a cometer suicídio, destruindo a sua vida. ram por esta situação em específico, deixaram o suficiente
Existem vários pontos de vista sobre o assunto, e para definir o que o nosso Estoico faria. Mesmo não acre-
existindo à face da Terra pouco mais de sete mil milhões ditando plenamente que pudesse impedir ou provocar a
de indivíduos, diferentes entre si (a maioria dos quais, morte de outro, sabe que o melhor é não tomar esse risco,
provavelmente, a pedido, opinaria acerca de um assunto) e que evitar a morte de outrem é algo de bom e virtuoso.
escolho apresentar a perspetiva estoica, herdada dos Hele- E a sua felicidade? Chorais pelo Estoico que não
nos antigos, neste tema vasto e complexo. chora por si mesmo? Ele vê a sua felicidade como sendo
Pois o que diz o velho Estoico? Para ele, apenas o sua, e nada do que é seu lhe pode ser tirado por outros;
que o próprio faz lhe é relevante; a sua felicidade depende ele é feliz por sua vontade, e continuará feliz por sua von-
apenas do seu próprio mérito, pensamento e sensação. A tade, independentemente da intervenção alheia.
reação dos outros ao que ele faz, e aquilo que os outros Sendo assim, temos duas situações, dois caminhos
fazem, está fora do seu poder para alterar, e é-lhe, portan- no qual a ação do Estoico o leva; acabar com a relação, e
to, um irrelevante. Nesse sentido, o Estoico ponderaria se ver a outra pessoa cair, ver o caos e sofrimento que daí
está de facto nas capacidades do indivíduo assolado por vêm para os outros; ou manter-se na relação, e ver a outra
este problema prevenir ou não o suicídio da pessoa ama- pessoa feliz, mantendo-se feliz também, independente-
da. mente da sua situação.
Mesmo assim, o Estoico também diria que é mais E assim vai, sereno, o Estoico, não revelando o se-
virtuoso (e ao Estoico nada lhe interessa tanto quanto a gredo que, mesmo parecendo estar numa situação infeliz,
virtude) tentar o que lhe é impossível em prol do bem- nada neste mundo o afeta.
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