Page 45 - Cassandra
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Assim sendo, vamos pensar em como queremos     sas que comem porque a escola lhes fornece refeições. E
         definir a História de Portugal? Podemos vir a ser reconhe-  isso não pode ser. Há que ter solidariedade, com o nosso
         cidos  como  um  povo  fechado,  egoísta,  narcisista  que  se   povo, o português e o humano.
         limita a si mesmo e despreza o que se passa à sua volta      É  difícil colocarmo-nos  no  lugar  de  outros  e  de
         como irrelevante. Podemos fazer-nos de cegos e fingir que   tomarmos  certas  decisões  na  devida  altura  sem  termos
         o que acontece à nossa volta não importa. Ou então não.   em conta todos os detalhes que as levaram a esse ponto,

         Podemos  ver  além  das  nossas  quatro  paredes,  quatro   mas não parece difícil imaginar o desespero de uma famí-
         fronteiras, para além das palas do burro que nos limitam   lia que entra num barco (pouco mais que uma jangada),
         a uma direção. Podemos ir para além disso, ir para além   para atravessar as cruéis ondas do mar feroz, sem esco-
         do previsto, e continuar a tradição milenar do nosso país   lha, porque a alternativa, de viver entre fanáticos e dita-
         de, contra todas as expectativas, ir mais longe e dar novos   dores, é insuportável. Como se sentir alheado de uma si-
         mundos ao mundo. Podemos dar nova esperança ao mun-   tuação como essa, que deveria afligir toda a Humanidade?
         do, e, contra todas as expectativas estender a mão aos que   Podemos não o querer imaginar, mas é necessário. É ne-
         mais precisam de uma ajuda neste momento.             cessário, por vezes, abalar o nosso mundo para tomarmos
                Temos em nós as qualidades dos intrépidos nave-  certas  decisões  difíceis,  mas  indispensáveis.  Temos  de
         gadores, mas acabamos por retraí-las para um mero Ve-  pensar nas crianças que morrem a tentar escapar desses
         lho  do  Restelo,  para  ideologias  retrógradas  que  veem  a   infernos na Terra. Crianças que querem aprender a ler e
         mulher como o sexo mais fraco, a Terra como plana e o   escrever, que querem brincar. Em vez disso, morrem em
         Homem como uma ilha. Ideologias que aconselham olhar   praias do Mar Egeu.
         somente  para  nós.  Ideologias  que  põem  o  ser-se  portu-  É difícil de imaginar, sem dúvida. Vivemos numa
         guês  como  um  conceito  racial,  de  origem  divina,  e  não   sociedade  na  qual  as  nossas  crianças  recebem  um brin-
         como a construção de séculos de uma mistura de povos,   quedo, usam-no por dez minutos e então esquecem-se da
         conceitos e esforços. O que somos nós senão os bastardos   sua existência, distraindo-se com outro qualquer brinque-
         dos gregos que fundaram Lisboa, os Romanos que cons-  do. As outras, em contraste, não têm nada. Nem roupa,
         truíram as estradas, os Mouros que ocuparam Sintra, os   nem comida, muito menos brinquedos. Seriam capazes de
         Filipes Espanhóis, que foram nossos Reis por 60 anos? E   pegar nesses brinquedos de dez minutos e fazê-los durar
         não tivemos também o contributo dos brasileiros e india-  dez anos. Parece ridículo negar-lhes ajuda, dar de comer a
         nos,  cujos  países  visitámos?  Isso  não  nos  marcou?  Não   essas crianças, por medo de assim não podermos comprar
         nos fez o que somos hoje? Não se nasce português, torna-  uma PlayStation  ou  um  iPhone.  Parece  indigno não po-
         se português! Com o suor do sol algarvio e as lágrimas tão   dermos usar sete dias das nossas férias para lhes dar se-

         salgadas quanto o mar! Nós somos a construção do mun-  tenta anos de vida. É necessário refletir e exercer compai-
         do que nos rodeia!                                    xão nos outros que nos rodeiam.
                Assim sendo, é ridículo pensar fechar as nossas       Eis-nos, então, enquanto povo. Temos necessida-
         fronteiras;  seria  extinguir  o  mesmo  alento  que  criou  a   de de começar um novo capítulo, uma nova aventura, e
         nação portuguesa. Como podemos sequer considerar im-  eis que nos surge uma excelente história que poderemos
         pedir indivíduos de entrarem no nosso país, de partilha-  seguir,  um  ótimo  caminho  para  começarmos  a  jornada
         rem connosco o que ainda temos? Que justificação poderá   para  voltarmos  a  ser  os  heróis  que  já  fomos.  Cabe-nos
         haver em recusar a entrada de refugiados, de criticar que   agora pegar na espada deixada pelos que vieram antes de
         os ajudem?                                            nós e escrevermos a nossa própria epopeia, que seja mai-
                É terem medo de perder o emprego? A globaliza-  or do que todas as outras.
         ção é um processo inevitável, e fomos nós que a começá-
         mos! Porque não querem misturas? O povo português é
         feito de misturas! Lusitanos, romanos, mouros e africanos
         que nos fazem o que somos! Porquê, então? Porque não
         ajudar os outros tanto quanto consigamos? É verdade que
         não estamos no nosso melhor; existem crianças portugue-


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