Page 203 - Girassóis, Ipês e Junquilhos Amarelos - 13.11.2020 com mais imagens redefinidas para PDF-7
P. 203
tirar dinheiro aos incautos e se divertiu participando da farsa, ao mesmo
tempo em que sentiu curiosidade pelas maneiras do homem e pela forma como
ele fizera aquele pedido triste, tão impessoal, como se estivesse se referindo ao
fim de outra pessoa e não ao seu próprio destino de desaparecimento em
completa solidão.
Sem real espanto, mas apenas surpreendido por ainda encontrar algo que o
surpreendesse naquele canto do mundo, onde acreditava já ter visto de tudo,
Cesar
Astu Ninan ficara observando o velho se afastar com andar trôpego, sem ao
menos se lembrar de lhe perguntar seu nome, ou a localização da propriedade
comprada, ou como iria saber, quando e como encontrá-lo, para assisti-lo na
sua morte. Pensara que talvez, um dia, pudesse usar a ideia daquele encontro
e do diálogo inacreditável em algum romance e, tão logo a figura encurvada
do velho desaparecera da sua vista, não pensara mais sobre ele.
Terminara seu drinque mergulhado em mil outros devaneios, já esquecido por
completo do incidente.
Dias depois os gritos aflitos de Consuelo, a cozinheira do casarão, o obrigaram
a recordar cada detalhe daquele encontro surreal, pois a assustada mulher
benzia-se diante de uma feia mancha de um líquido vermelho, que mais tarde
se verificou ser mesmo sangue, a se alargar na vidraça de um dos janelões da
cozinha.
Entre as repetições de “Madre de Dios,” e as lágrimas da cozinheira, Cesar
correu para testemunhar a aparição inexplicável que foi crescendo até
dominar a vista inteira do jardim, transformando-a num borrão difícil de
decifrar.
Ficaram os dois, imóveis, observando o sangue a se esparramar e viram
quando uma mão humana limpou um espaço do vidro para deixar aparecer
um rosto de velho, quase transparente na sua lividez espectral e com um olhar
tão solitário e triste que causava pena, muito além do medo.