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APÊNDICE
SOBRE OS HUMORES
É necessário me imaginar, na tarde do primeiro dia de Páscoa, em
casa, envolto num roupão; fora, cai uma chuva fina; no quarto, só eu.
Caneta na mão, contemplo longamente o papel branco que está diante de
mim; estou irritado com a massa confusa de objetos, de acontecimentos, de
pensamentos, que todos exigem que os anote; vários dentre eles o exigem
com violência; são jovens e turbulentos como um vinho novo; mais de um
pensar antigo, amadurecido, esclarecido se opõe, porém, como um velho
senhor que lança um olhar equivoco sobre as aspirações da juventude.
Vamos dizê-lo francamente, o estado de nossa alma é determinado por essa
discussão entre o velho mundo e o novo e nós descrevemos cada fase desse
conflito dizendo que somos de tal ou qual humor ou, com uma ponta de
desprezo, que somos bem ou mal humorados.
Como bom diplomata, me elevo um pouco acima dos partidos em
disputa e descrevo a situação do Estado com a imparcialidade de um
homem que assiste dia após dia, como por inadvertência, às sessões de
todos os partidos e recorre na prática ao principio pelo qual, na tribuna, só
há zombarias e piadas.
Vamos confessá-lo: escrevo sobre os humores porque estou com
humor para fazê-lo; e é uma bela ocasião que eu esteja justamente com
humor para escrever sobre os humores.
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Toquei hoje numerosas vezes as Consolações de Liszt ; sinto que
esses acordes penetraram em mim, despertando como um eco
espiritualizado. Por outro lado, fiz há pouco a dolorosa experiência de um
adeus que talvez não seja um adeus e noto como certo sentimento e esses
acordes se fundiram; e acredito que a música não me teria agradado se não
tivesse feito essa experiência. A alma procura, portanto, atrair para ela o
que se lhe assemelha e a massa dos sentimentos presentes espreme como
79 Franz Liszt (1811-1886), compositor, pianista e regente húngaro; Nitzsche cita a célebre peça musical
para piano Consolations, composta por Liszt em 1850 (NT).