Page 158 - As Viagens de Gulliver
P. 158

teve o atrevimento de, com o bico, me arrebatar da mão um pedaço de bolo que
      Glumdalclitch acabara de me dar para o meu pequeno-almoço. Se acaso tentava
      agarrar  algum  destes  pássaros,  viravam-se  ameaçadores  contra  mim,
      procurando picar-me os dedos, que eu, à cautela, mantinha longe deles, voltando
      em  seguida,  saltitando  como  se  nada  fosse,  à  sua  tarefa  anterior  de  procurar
      vermes  e  caracóis.  Porém,  um  dia  peguei  num  tronco  e  arremessei-o  com
      quanta força tinha a um pintarroxo, com tal sorte que o derrubei, e, agarrando-o
      pelo pescoço com ambas as mãos, a correr, levei-o em triunfo à minha aia. Mas
      o pássaro, que apenas ficara atordoado, ao recompor-se da pancada, apesar de o
      segurar a todo o comprimento dos meus braços, mantendo-me longe do alcance
      das suas garras, começou a socar de tal modo a minha cabeça e corpo com as
      suas asas que me dispunha a soltá-lo, quando de pronto fui socorrido por um dos
      empregados, que torceu o pescoço ao pássaro, que constituiu o meu jantar no dia
      seguinte,  por  ordem  da  rainha.  Este  pintarroxo,  pelo  que  me  é  dado  lembrar,
      seria talvez um pouco maior que um cisne de Inglaterra.
          As  damas  de  companhia  costumavam  convidar  Glumdalclitch  para  os
      seus aposentos, pedindo-lhe sempre que me levasse com ela, para terem o prazer
      de  me  ver  e  tocar.  Punham-me  frequentemente  nu  dos  pés  à  cabeça  e
      colocavam-me ao comprido sobre o seu peito, o que me enojava sobremaneira,
      pois,  para  dizer  a  verdade,  exalava  das  suas  carnes  um  cheiro  extremamente
      desagradável, que apenas era devido à acuidade do meu sentido, proporcional ao
      tamanho, não tencionando eu de modo algum, ao mencionar tal coisa, humilhar
      aquelas excelentes damas, que eu tanto respeito, reconhecendo, pelo contrário,
      que  elas  não  seriam  mais  desagradáveis  para  os  seus  amantes,  ou  um  para  o
      outro,  que  as  pessoas  da  mesma  qualidade  o  são  entre  nós  em  Inglaterra.  E,
      apesar  de  tudo,  suportava  melhor  o  seu  cheiro  natural  que  quando  usavam
      perfumes, sob cujo efeito eu imediatamente desmaiava. Não me posso esquecer
      que em Lilipute um íntimo amigo meu tomou a liberdade de, num dia quente e
      depois  de  eu  ter  feito  bastante  exercício,  se  queixar  de  um  forte  cheiro
      proveniente de mim, apesar de eu pecar tanto nesse capítulo como qualquer um
      do meu sexo, supondo eu ser a sua capacidade olfativa tão sutil em relação a
      mim como a minha o era em relação à deste povo. Sob este aspecto não posso
      deixar de apreciar a rainha, minha dona, e Glumdalclitch, minha aia, de cujas
      pessoas  se  desprendia  cheiro  tão  agradável  como  o  de  qualquer  dama  em
      Inglaterra.
   153   154   155   156   157   158   159   160   161   162   163