Page 160 - As Viagens de Gulliver
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O que mais me custava, quando Glumdalclitch me levava em visita a
estas damas de companhia, era vê-las usarem de mim sem qualquer espécie de
cerimónia, como se eu não passasse da criatura mais insignificante. E, assim,
despiam-se por completo e envergavam as suas blusas na minha presença,
comigo colocado em cima do toucador, mesmo em frente dos seus corpos nus, o
que, podem ter a certeza, estava bem longe de constituir uma visão tentadora ou
despertar em mim qualquer outra coisa além de horror e repulsa. As suas peles
apareciam-me grosseiras e disformes, com vários tons quando as observava de
perto, com manchas aqui e ali, tão largas como pratos, e com pêlos caídos, mais
grossos que cordas de embrulho, para não ir mais longe no resto da descrição das
suas pessoas. Também não se coibiam de, na minha presença, se aliviarem do
que tinham bebido, aí uns dois cascos pelo menos, num recipiente com
capacidade superior a três tonéis. A mais bonita destas damas de honor, uma
divertida e travessa jovem de dezesseis anos, por vezes escarranchava-me num
dos seus mamilos, fazendo-me ainda muitas outras travessuras, sobre as quais
peço desculpa ao leitor por não entrar em pormenores. Porém, foi tudo tão
desagradável para mim que pedi insistentemente a Glumdalclitch que inventasse
qualquer desculpa para nunca mais voltar a ver aquela jovem.
Um dia um jovem senhor, sobrinho da preceptora da minha aia, veio
visitá-la, insistindo depois para que ambas o acompanhassem à execução de um
homem, que assassinara um amigo íntimo dele. Glumdalclitch foi persuadida a
fazer parte do grupo, muito contra as suas inclinações, pois ela era de natureza
sensível; quanto a mim, que abominava tais espectáculos, sentia-me, porém,
tentado pela curiosidade a assistir a um acontecimento que prometia ser
extraordinário. O malfeitor foi amarrado a uma cadeira sobre o cadafalso,
erguido para esse fim, e a sua cabeça separada do corpo dum só golpe de uma
espada com cerca de quarenta pés de comprimento. Das veias e artérias
esguichou quantidade de sangue tão prodigiosa, elevando-se tão alto no ar e
durante tanto tempo, que nem o jet d'eau de Versalhes se lhe comparava; e a
cabeça, ao cair no estrado do patíbulo, provocou tal estrondo que me fez
estremecer, apesar de me encontrar a uma milha de distância, pelo menos.
A rainha, que muitas vezes gostosamente me ouvia contar histórias sobre
as minhas viagens marítimas e aproveitava todas as ocasiões para me distrair,
quando me achava um pouco mais melancólico, perguntou-me se eu não sabia
manobrar com uma vela ou remos e se remar um pouco não constituiria um
bom exercício para a minha saúde. Eu respondi-lhe que sabia fazer ambas as
coisas bastante bem, pois, apesar das minhas funções exclusivas a bordo serem
as de um cirurgião, quando em apuros via-me muitas vezes forçado a trabalhar
como um simples marinheiro. Mas eu não percebia como isso seria possível no