Page 185 - As Viagens de Gulliver
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tão injuriosamente tratado. É profunda a minha pena, como também, talvez, a de
alguns dos meus leitores, por tal ocasião se ter proporcionado; mas acontecia ser
este príncipe tão curioso e indiscreto que, tanto pela gratidão que lhe devo como
pelo respeito que lhe tenho, não pude recusar satisfazê-lo dentro do que me era
possível. Porém, outro tanto permitir-me-ei dizer em minha defesa própria: que
iludi artificiosamente muitas das suas perguntas e expus todos os assuntos sob um
ângulo muito mais favorável do que a verdade alguma vez me permitiria. Pois
sempre alimentei em mim este facciosismo louvável pelo meu país, que
Dionisius Halicarnassensis tão justamente recomenda a todo o historiador. Eu
esconderia as fraquezas e deformidades da minha mãe política, para sob a luz
mais vantajosa colocar as suas virtudes e belezas. Foi esta a minha atitude sincera
nas muitas dissertações com aquele monarca, mas que, contudo, infelizmente,
fracassou.
Porém, devem-se considerar grandes atenuantes no caso de um príncipe
como este, que, completamente apartado do resto do mundo, necessariamente
desconhece os usos e costumes dominantes nas outras nações. E, naturalmente, a
ausência de tal conhecimento dá azo a uma série de preconceitos, e a uma certa
tacanhez de espírito, dos quais nós, e os países mais cultos da Europa, estamos
completamente isentos. E seria uma situação difícil, de facto, se noções tão
remotas de um príncipe sobre a virtude e o vício fossem oferecidas como
estandarte a toda a humanidade.
A confirmar o que acabei agora de dizer e a mostrar, além disso, os
efeitos miseráveis de uma educação estreita, vou incluir aqui uma passagem, em
que dificilmente acreditarão. Na esperança de captar ainda mais as boas graças
de Sua Majestade, falei-lhe numa invenção feita há uns trezentos ou quatrocentos
anos, que consistia em determinado pó que, mesmo em quantidades
descomunais, ao mínimo contacto com uma faísca se incendiava por completo
num segundo, atirando tudo pelo ar, com um barulho e agitação maiores que um
trovão. Que uma determinada quantidade deste pó, comprimida num tubo oco de
ferro, arremessaria, conforme o tamanho, uma bola de ferro com tal violência e
velocidade que nada a poderia suster. Que bolas das maiores disparadas por este
meio não só dizimariam as fileiras completas de um exército de uma só vez,
como desmoronariam os muros mais poderosos e afundariam barcos com mil
homens a bordo; e, quando unidas por uma cadeia, cortariam os mastros e o
cordame e despedaçariam centenas de corpos, deixando só destroços à sua
passagem. Que muitas vezes colocávamos deste pó em grandes bolas de ferro
ocas e disparávamo-las, por meio de um engenho, na direcção da cidade que
estávamos a assediar, indo abrir crateras no solo, desmantelar casas e fazer voar
estilhaços em todos os sentidos, que feriam mortalmente quem se encontrasse
perto. Que eu conhecia perfeitamente os ingredientes, aliás de fácil obtenção, e