Page 83 - As Viagens de Gulliver
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“Art. 4.° — Que o mencionado Quimbus Flestrin, contra o dever de um
      súdito fiel, se dispunha agora a fazer uma viagem à corte de Blefuscu, para a
      qual recebera apenas uma licença verbal de Sua Majestade imperial, e, sob o
      pretexto da dita licença, se propunha temerária e perfidamente a fazer a citada
      viagem, livrar de apuros e auxiliar o imperador de Blefuscu.”
          —  Ainda  existem  outros  artigos  —  acrescentou  ele  —  mas  os  mais
      importantes são aqueles que acabo de citar-lhe. Nas diversas deliberações sobre
      este assunto, é preciso confessar que Sua Majestade fez ver a sua moderação, a
      sua  suavidade  e  a  sua  equidade,  considerando  muitas  vezes  os  seus  serviços  e
      tratando de atenuar os seus crimes. O tesoureiro e o almirante foram de opinião
      que devia sofrer morte cruel e ignominiosa, lançando fogo à sua casa durante a
      noite,  e  o  general  devia  esperá-lo  com  vinte  mil  homens  armados  de  flechas
      envenenadas, para o ferir no rosto e nas mãos. Ordens secretas deviam ser dadas
      a alguns dos seus criados para espalharem um líquido venenoso nas suas camisas,
      líquido que depressa rasgaria a própria carne, fazendo-o morrer entre excessivos
      tormentos. O general concordou, de maneira que, durante certo tempo, a maioria
      dos votos foi contra si; Sua Majestade imperial, porém, resolvido a salvar-lhe a
      vida, conseguiu o sufrágio do camareiro-mor.
          Entretanto, Redresal, primeiro secretário dos negócios secretos do Estado,
      recebeu ordem do imperador para dar a sua opinião, o que fez em conformidade
      à de Sua Majestade, e decerto justificou bem a estima que o senhor lhe consagra:
      reconheceu  que  os  crimes  cometidos  eram  grandes,  contudo  mereciam  esta
      indulgência; disse que a amizade que havia entre ambos era tão conhecida, que
      talvez o pudesse julgar prevenido a seu favor; que, no entanto, para obedecer ao
      mandado de Sua Majestade, ponderando os seus serviços e seguindo a suavidade
      do  seu  espírito,  queria  poupar-lhe  a  vida  e  contentar-se  em  tirar-lhe  os  olhos.
      Julgava com submissão que, por esta forma, a justiça podia ficar de algum modo
      satisfeita,  e  todos  aplaudiriam  a  clemência  do  imperador,  tão  bem  como  o
      processo  equitativo  e  generoso  daqueles  que  tinham  a  honra  de  ser  seus
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