Page 87 - As Viagens de Gulliver
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O discurso do imperador a meu respeito depressa correu por todo o país, e
nada inspira tanto terror ao povo como esses elogios da clemência imperial,
porque se tinha notado que, quanto mais rasgados eram esses elogios, mais o
suplício era, ordinariamente, cruel e injusto. E, com respeito a mim, preciso é
confessar que, não sendo pelo meu nascimento, nem pela minha educação,
destinado a ser homem de corte, percebia tão pouco desses assuntos, que não
podia decidir se a sentença lavrada contra mim era branda ou rigorosa, justa ou
injusta. Nem sequer pedi licença para apresentar a minha defesa: preferia ser
condenado sem ser ouvido, porque, tendo visto em outros tempos vários
processos idênticos, sempre notei que terminam consoante às instruções dadas
aos juízes e conforme à vontade dos acreditados e poderosos acusadores. Tive
certo desejo de resistir, pois que, estando em liberdade, nem todas as forças deste
império conseguiriam nada de mim e podia facilmente, à pedrada, bater e
arrasar a capital; repeli, porém, esse projeto com horror, lembrando-me do
juramento que prestara a Sua Majestade, dos favores que me havia concedido e
da dignidade de nardac, em que fora investido. Demais, não tinha tão cheio o
espírito dos sentimentos da corte, que me persuadisse de que os rigores de Sua
Majestade me permitiriam liquidar todas as obrigações que lhe devia.
Por fim, tomei uma resolução, que, conforme as aparências, será
censurada por algumas pessoas justiceiras, porque, confesso, foi uma grande
temeridade e um péssimo procedimento da minha parte ter querido conservar os
olhos, a liberdade e a vida, contra a vontade da corte. Se conhecesse melhor a
índole dos príncipes e dos ministros de Estado, que depois observei em muitas
outras cortes, e o seu método de tratar acusados menos criminosos do que eu,
submeter-me-ia sem custo a um castigo tão suave; mas, levado pelo fogo da
mocidade, e tendo antecipadamente obtido licença de Sua Majestade imperial
para ir à corte de Blefuscu, dei-me pressa, antes de expirado o prazo de três dias,
em mandar uma carta ao meu amigo secretário, pela qual o fazia ciente da
resolução que tomara de partir nesse mesmo dia para Blefuscu, mediante a
licença que me fora concedida, e, sem aguardar resposta, dirigi-me para a costa
da ilha, onde estava a esquadra. Apossei-me de um grande navio de guerra,
prendi-lhe um cabo à proa e, levantando as âncoras, despi-me, coloquei a roupa
(e a manta que trazia no braço) sobre o navio, que trouxe atrás de mim, e ora