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LIVROS
“o bacilo da peste não
cas funcionam igual” (Gustavo Franco, morre nem desaparece mo acelerado, que não permite tempo
que também refuta diretamente a es- nunca, que pode livre e de qualidade para a esmagadora
querda pela crítica ao capitalismo, ci- maioria.
tando inclusive Zizek); permanecer adormecido Essa ideia é uma parte do que Ail-
d) a solução é assistencialismo de por décadas nos móveis ton Krenak discute em seu livro “O
Estado e cooperação internacional amanhã não está à venda”. O título sinte-
É possível conjecturar que e nas roupas, que espera tiza uma crítica ao capitalismo de dois
[pós-covid] os governos se vejam pacientemente nos pontos de vista: o primeiro é uma crí-
compelidos por seus cidadãos a tica do modo de vida que privilegia o
cooperar entre si a fim de desen- quartos, nas adegas, dinheiro e, com isso, promove uma su-
volver respostas conjuntas a temas nas malas, nos lenços e per exploração da natureza, tendo o an-
como aquecimento global, combate tropocentrismo como motor ao separar
a pandemias, fluxos migratórios e nos papéis, que talvez a ‘humanidade’ e a ‘civilização’ “desse
refugiados. [...] O Estado nacional chegue o dia em que, organismo que é a Terra; e o segundo é
está condenado a solidariedade. Os justamente a ideologia ‘futurista’ do ca-
programas de assistencialismo não infortúnio ou lição pitalismo que “vende” o amanhã como
serão mais objeto de questionamen- aos homens, a peste algo a ser alcançado em detrimento do
to. (Eduardo Eugênio) hoje. O progressismo que impulsiona
acordará seus ratos para todos a ‘chegar lá’ ao mesmo tempo
À parte o Capital como solução, as mandá-los morrer numa que afasta a linha do horizonte, sempre
questões de aperfeiçoamento pessoal que dela nos aproximamos.
e cooperação internacional também cidade feliz”. Ele nos conta uma conversa que
são soluções encontradas no cam- Albert Camus teve com engenheiros por ocasião do
po progressista. um exemplo é Lilian uso de tecnologia para recuperar o rio
Schwarcz que afirma: “Sou pessimis- emanciparia e libertaria. Discordo Doce (depois do desastre da Vale) em
ta no atacado e otimista no varejo. Se da afirmação de que não estávamos que perguntaram a opinião dele – “Eu
cada um exercer sua cidadania, sua vi- globalizados no século XIX, mas foi respondi: A minha sugestão é muito
gilância cidadã, quem sabe damos sor- apenas no século XX que a tecno- difícil de colocar em prática. Pois terí-
te no azar. [...] O fato é que a sociedade logia ganhou escala mundial e ace- amos de parar todas as atividades hu-
civil está comparecendo. A população lerou o nosso tempo. Graças a ela, manas que incidem sobre o corpo do
acordou para a importância do SUS e acreditávamos estar nos livrando das rio [...] até que ele voltasse a ter vida.
da ciência”. E enquanto a maioria dos amarras geográficas, corpóreas, tem- Então um deles me disse: Mas isso é
autores destacou a dificuldade em se porais. Não estávamos! Ao deixar impossível. O mundo não pode parar.
fazer qualquer predição sobre o assun- mais evidente o nosso lado humano E o mundo parou”.
to, em seu livro, a historiadora anuncia e vulnerável, a pandemia da covid-19 Krenak faz uma crítica profunda-
o fim do século XX: marca o final do século XX mente anticapitalista, que tenta “com-
Hobsbawn tem razão: os sécu- partilhar a mensagem de um outro
los não terminam com o virar da A historiadora aponta ainda que mundo possível”, mas não de forma in-
folhinha do calendário, mas quando há tempos recebíamos alertas de cien- gênua, inclusive cita uma frase de Ca-
grandes crises colocam em questão tistas, ambientalistas e lideranças indí- mus, usada por Domenico de Masi em
verdades que pareciam consolidadas. genas sobre nossa marcha desenfreada artigo recente, que diz: “a peste pode
A grande marca do século XX foi a pelo progresso e a crescente exploração vir e ir embora sem que o coração do
tecnologia e a ideia de que ela nos da natureza. E também sobre nosso rit- homem seja modificado” e que:
78 ESQUERDA PETISTA #11 - Setembro 2020