Page 217 - Fernando Pessoa
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FERNANDO  PESSOA

                       mente  feminiza.  Falhamos  a  nossa  verdadeira  profissão  de
                       donas-de-casa e de castelãs sem que fazer por um transvio de
                       sexo na encarnação presente. Embora não acreditemos abso-
                       lutamente nisto, sabe ao sangue da ironia fazer em nós como
                       se o acreditássemos.


                            Tudo isto não é por maldade, mas por debilidade apenas.
                       Adoramos, a sós, o mal, não por ele ser o mal,  mas porque
                       ele é mais intenso e forte que o Bem, e tudo quanto é intenso
                       e  forte  atrai  os  nervos  que  deviam  ser  de  mulher.  Pecca
                       fortiter não pode ser conosco, que não temos  força,  nem  se-
                       quer a da inteligência,  que é  a  que  temos.  Pensa  em  pecar
                       fortemente — é o mais que para nós pode valer essa indica-
                       ção aguda.  Mas nem  mesmo isso às vezes nos é possível:  a
                       própria vida interior tem uma realidade que às vezes nos dói
                       por ser uma realidade qualquer. Haver leis para a associação
                       de idéias, como para todas as operações do espírito insulta a
                       nossa indisciplina nativa.




                            Se considero com atenção a vida que os homens vivem,
                       nada  encontro  nela  que  a  diferencie  da  vida  que  vivem  os
                       animais. Uns e outros são lançados inconscientemente  atra-
                       vés  das  coisas  e  do  mundo;  uns e outros  se  entretêm  com
                       intervalos;  uns  e  outros  percorrem  diariamente  o  mesmo
                       percurso  orgânico;  uns  e  outros  não  pensam  para  além  do
                       que  pensam,  nem  vivem  para  além  do  que  vivem.  O  gato
                       espoja-se ao sol e dorme ali. O homem espoja-se à vida, com
                       todas as suas complexidades, e dorme ali.  Nem um nem ou-
                       tro  se liberta  da  lei  fatal  de  ser  como  é.  Nenhum  tenta  le-
                       vantar o peso de ser. Os maiores dos homens amam a glória,
                       mas amam-na, não como a uma imortalidade própria,  senão
                       como  a  uma  imortalidade  abstrata,  de  que  porventura  não
                       participem.
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