Page 221 - Fernando Pessoa
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FERNANDO  PESSOA
                        adaptar o corpo doente ao corpo são; mas nós não sabemos o
                        que é são ou doente na vida social.

                            Não  posso  considerar  a  humanidade  senão  como  uma
                        das últimas escolas na  pintura  decorativa  da  Natureza.  Não
                        distingo,  fundamentalmente,  um  homem  de  uma  árvore;  e,
                        por certo,  prefiro o que mais decore,  o que mais interesse os
                        meus olhos pensantes.  Se  a  árvore  me  interessa mais,  pesa-
                        me  mais  que  cortem  a  árvore  do  que  o  homem  morra.  Há
                        idas de  poente que  me  doem  mais  que  mortes  de  crianças.
                        Em tudo sou o que não sente, para que sinta.


                            Quase  me  culpo  de  estar  escrevendo  estas  meias  refle-
                        xões nesta hora em que dos confins da tarde sobe, colorindo-
                        se,  uma brisa ligeira.  Colorindo-se não,  que não é ela que se
                        colora,  mas o  ar em  que bóia incerta;  mas,  como  me  parece
                        que é ela mesma que se colora,  é isso  que digo,  pois  hei  por
                        força de dizer o que me parece, visto que sou eu.




                            O  mundo  é  de  quem  não  sente.  A  condição  essencial
                        para se ser um homem prático é a ausência de  sensibilidade.
                        A  qualidade  principal  na  prática  da  vida  é  aquela  qualidade
                        que conduz à ação,  isto é,  a vontade.  Ora há duas coisas que
                        estorvam a ação  — a sensibilidade e o pensamento analítico,
                        que não é,  afinal,  mais que o pensamento com  sensibilidade.
                        Toda a ação é,  por sua natureza,  a projeção da personalidade
                        sobre o mundo externo, e como o mundo externo é em gran-
                        de e principal parte composto por entes humanos,  segue que
                        essa projeção da personalidade é essencialmente o  atravessar-
                        mo-nos  no  caminho  alheio,  o  estorvar,  ferir  e  esmagar  os
                        outros, conforme o nosso modo de agir.

                            Para  agir  é,  pois,  preciso  que  nos  não  figuremos  com
                        facilidade as personalidades alheias,  as suas dores  e alegrias.
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