Page 223 - Fernando Pessoa
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FERNANDO  PESSOA

                        ficar  na miséria".  Depois,  acendendo  o  charuto,  acrescen-
                        tou:  "Em  todo  o  caso,  se  ele  precisar  qualquer  coisa  de
                        mim"   —  entendendo-se  qualquer  esmola  —  "eu  não  es-
                        queço  que  lhe  devo  um  bom  negócio  e  umas  dezenas  de
                        contos."


                             O patrão  Vasques  não é um bandido:  é  um  homem  de
                        ação. O que perdeu o lance neste jogo pode,  de  fato,  pois o
                        patrão Vasques é um homem generoso, contar com a esmola
                        dele no futuro.

                             Como o patrão Vasques são todos os homens de ação —
                        chefes industriais e comerciais, políticos, homens de guerra,
                        idealistas religiosos e sociais, grandes poetas e grandes artis-
                        tas,  mulheres  formosas,  crianças  que  fazem  o  que  querem.
                        Manda quem não sente.  Vence quem pensa só o que precisa
                        para vencer. O resto, que é a vaga humanidade geral,  amor-
                        fa,  sensível,  imaginativa e  frágil,  é não  mais  que o  pano  de
                        fundo contra o qual se destacam estas figuras da cena até que
                        a peça de fantoches acabe, o fundo-chato de quadrados sobre
                        o  qual  se  erguem  as  peças  de  xadrez  até  que  as  guarde  o
                        Grande Jogador que,  iludindo a reportagem com  uma  dupla
                        personalidade, joga, entretendo-se sempre contra si  mesmo.






                             Quanto mais contemplo o espetáculo do mundo, e o flu-
                        xo e refluxo da mutação das coisas, mais profundamente  me
                        compenetro da ficção ingênita de tudo,  do prestígio  falso da
                        pompa de todas as realidades.  E nesta contemplação,  que a
                        todos, que refletem, uma ou outra vez terá sucedido, a mar-
                        cha multicolor dos costumes e das modas, o caminho com-
                        plexo dos progressos e das civilizações, a confusão grandiosa
                        dos impérios e das culturas — tudo isso me aparece como um
                        mito e uma ficção, sonhado entre sombras e esquecimentos.
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