Page 218 - Fernando Pessoa
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LIVRO  DO  DESASSOSSFGO

                 Estas  considerações,  que  em  mim  são  freqüentes,  le-
             vam-me a uma admiração súbita por  aquela espécie  de  indi-
             víduos que instintivamente repugno.  Refiro-me aos místicos
             e aos ascetas — aos remotos de todos os Tibetes, aos Simões
             Stilitas  de  todas  as  colunas.  Estes,  ainda  que  no  absurdo,
             tentam,  de  fato,  libertar-se  da  lei  animal.  Estes,  ainda  que
             na loucura, tentam, de fato, negar a lei da vida, o espojar-se
             ao sol e o aguardar da morte sem pensar nela.  Buscam, ainda
             que parados no alto de uma coluna; anseiam, ainda que numa
             cela  sem  luz;  querem  o  que  não  conhecem,  ainda  que  no
             martírio dado e na mágoa imposta.

                 Nós outros  todos,  que  vivemos  animais  com  mais  ou
             menos complexidade,  atravessamos o palco  como  figurantes
             que  não  falam,  contentes  da  solenidade  vaidosa  do  trajeto.
             Cães e homens, gatos e heróis, pulgas e gênios, brincamos a
             existir,  sem  pensar  nisso  (que  os  melhores  pensam  só  em
             pensar) sob o grande  sossego  das  estrelas.  Os outros  —  os
             místicos da má hora e do sacrifício — sentem ao menos, com
             o corpo e o quotidiano,  a presença  mágica do mistério.  São
             libertos,  porque  negam o  sol  visível;  são  plenos,  porque  se
             esvaziaram do vácuo do mundo.

                 Estou quase místico, com eles, ao falar deles, mas seria
             incapaz de  ser  mais  que  estas  palavras  escritas  ao  sabor  da
             minha inclinação ocasional. Serei sempre da Rua dos Doura -
             dores,  como a  humanidade inteira.  Serei sempre,  em  verso
             ou prosa, empregado de carteira.  Serei sempre no místico ou
             no  não-místico,  local  e  submisso,  servo  das  minhas  sensa-
             ções e  da  hora  em  que  as  ter.  Serei  sempre,  sob  o  grande
             palio  azul  do  céu  mudo,  pajem  num  rito  incompreendido,
             vestido de vida para cumpri-lo, e executando,  sem saber por
             quê,  gestos  e  passos,  posições  e  maneiras,  até  que  a  festa
             acabe, ou o meu papel nela, e eu possa ir comer coisas de gala
             nas grandes barracas que estão, dizem, lá embaixo no  fundo
             do jardim.
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